Capítulo 6 - O Homem Dos Quases

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"A partir de quando se é louco?"

João Gabriel arqueou a sobrancelha, inclinando-se na cadeira, enquanto lia a passagem de abertura da palestra registrada no livro a sua mão. Aquela era uma excelente pergunta. Quando é que um hábito, mania ou jeito de ser se tornava louco? Quando foi que ele se tornou louco?

Ele puxou sua caderneta sobre a mesa, manchada de cafés e pingos de tintas, e rabiscou a frase para não esquecer. Então voltou sua atenção para o livro que, dentre outras coisas, buscava responder se James Joyce era ou não louco.

João tinha lá suas hipóteses – mas não era psicólogo ou psicanalista como o dono das palavras do livro. Então ele preferia guardar para si suas próprias conjecturas, para não sair por aí falando coisas que não tinham nada a ver. O professor entendia muito pouco de psicologia – seu conhecimento era uma mistura de anos de análise, leituras para o doutorado em literatura, e umas pesquisas curiosas sobre o assunto.

Mais à frente no texto, o psicanalista francês soltou a frase que, mesmo sendo só um conjunto de palavras, fez o corpo de João retesar como se ele tivesse levado um tiro: "A loucura não é privilégio". E não era mesmo, ele sabia bem. Mas como era bom ler aquilo pelos olhos de um especialista.

João Gabriel rabiscou no papel "agradecer a Pedro pelo presente" porque aquilo com certeza foi o melhor livro que ele havia ganhado nos últimos anos, não só porque era um livro que analisava seu autor preferido, como também um livro que não romantizava os transtornos mentais como ele sempre tinha a ideia de que muita gente romantizava nos livros.

Assim que arrancou o post-it para colar na mesa, ao lado de vários outros papéis coloridos cheios de lembrete, alguém bateu em sua porta.

— Entra – ele disse, colando o papel sobre a mesa.

A porta foi aberta, mas João não ergueu o rosto. Pelo canto da visão podia vislumbrar Clarice, dando passos inseguros para dentro da sala. Mas, ao invés de encara-la, voltou sua atenção ao livro, franzindo o cenho para os desenhos de explicação que o autor usava para tentar clarear um pouco mais da ideia que debatia naquela palestra. Ele assentiu para ele mesmo, rabiscando algumas coisas na sua caderneta, e se sentiu satisfeito ao terminar aquele capítulo e, aparentemente, ter entendido o mínimo para poder continuar a leitura.

Foi só então que ele disse:

— Você vai ficar parada aí sem se manifestar até quando?

— Ahn, não queria incomodar.

João revirou os olhos e, ainda sem olha-la, abriu a gaveta da sua mesa e tirou de lá dois vidros de remédio. Ele pegou um comprimido de cada vidro e jogou-os dentro da boca, engolindo sem nenhum líquido.

— Sente-se – ordenou, fechando a gaveta novamente.

A garota, claramente desconfortável em todas as suas expressões e passos, se arrastou até a cadeira a frente dele, do outro lado da mesa.

— Você recebeu meu e-mail ontem? – ele perguntou, empurrando o livro que estava lendo para o canto, junto de outros livros que também estava lendo.

— Sobre você ter lido meu artigo? – ela questionou – Sim.

— Então – ele a olhou, analisando as expressões da garota – Você pensou? Sobre o que escrevi no e-mail.

Clarice parecia uma gatinha assustada. A respiração dela não estava regular e ela apertava tanto sua mochila que os dedos dela estavam ficando brancos. Se João estivesse num dia bom, talvez pudesse se divertir quanto àquilo. Mas ele apenas estava vivendo com sua capa da normalidade mais apertada em seu corpo naquele dia, se protegendo de qualquer coisa que o ameaçasse, forçando-se a ser o que os outros esperavam que ele fosse... O professor doutor em literatura moderna, apaixonado por James Joyce e que detestava literatura comercial com todas as suas forças. Era isso que queriam que ele fosse.

Diversas Formas de Nós [COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora