Capítulo 37 - Sobreviventes

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"Ao mesmo tempo, para todos, era extremamente cômodo e perfeitamente insuportável permanecer assim, no meio do parado, suspeitando voos de morcegos por trás das janelas fechadas daquele quarto onde, quem sabe, apenas as âncoras ancoradas nas paredes poderiam indicar qualquer coisa como - um rumo? E, finalmente, por uma longa série de razões vagas fundas baças tolas ou ainda mais confusas, esse tipo de coisa era praticamente tudo que se poderia dizer sobre eles. Assim lento, assim amargos, assim surdos, assim fortes até. Sobrevivendo à morte de todos os presságios." (ABREU, Caio F. in Os Companheiros - Morangos Mofados, 1996)


A mente era uma coisa complicada – às vezes ela era bombardeada por dezenas de pensamentos ao mesmo tempo, às vezes um só era o bastante para não te deixar sair do lugar; e, em raras ocasiões, aconteciam o paradoxo das duas coisas. Pelo menos, assim era a mente de João Gabriel, enquanto ele percorria as ruas de Ponte Belo após sua consulta no psiquiatra.

Existia alguma coisa mais horripilante do que ir a um psiquiatra?

João Gabriel acreditava que não.

Era sempre a mesma coisa: a espera silenciosa na antessala, o sorriso leonardiano* do médico, o convite para entrar e se sentar; umas meias dúzias de palavras, oi-como-você-vai-indo-e-sua-medicação-e-seus-sintomas; nada de olhar nos olhos, nada de conversa. A máxima do capitalismo: tempo é dinheiro. Dinheiro caro, João Gabriel tinha plena consciência disso, embora não tivesse muita consciência de tantas outras coisas naquele momento.

Aumento da dosagem de remédio – que maravilha. Veja bem, senhor – falara o psiquiatra, e naquele momento ele bem que queria ter respondido que, por um acaso, era doutor, mais do que ele, que não tinha doutorado nenhum, mas apenas mordeu o lábio e esperou o médico concluir com aquele maldito sorriso que não queria dizer nada e ao mesmo tempo dizia tantas coisas – até acho que você ficou muitos anos só com a mesma dosagem, coisa incomum para casos assim... então, bem, vamos ter de aumentar sua dosagem, hein? Que tal dois comprimidos, ao invés de um?

Que tal você se ferrar? – era basicamente a resposta de João Gabriel pululando em sua mente, mas ele apenas deu de ombros, porque aquela não era uma pergunta justa, uma pergunta que pedia uma resposta, o que de fato se comprovou pelo médico assinar a receita antes que ele abrisse a boca. Tudo bem – tem coisas que não valem mesmo a pena falar.

Seria bom – continuou o médico, mesmo sem ser convidado a dizer coisa alguma – se você tivesse mais atividades... você já experimentou pintar? Ou correr?

Ironia, é óbvio que João Gabriel já testara tudo isso. Ele carregava a droga daquele transtorno por quase duas décadas, se considerar os anos que fora taxado, erroneamente, como só depressivo. Era bastante óbvio que ele já havia testado tudo que lhe fora ofertado – inclusive, doutor, ele queria muito ter dito, umas sessões de eletrochoque, se você quer saber. Uma delícia, recomendo para todo mundo, sabe?

Mas seu psiquiatra não sabia. Seu psiquiatra estava do outro lado da mesa, achando que sabia sobre aquilo que ele sentia. Ele só repetia o que os livros e manuais diziam: quanto mais atividades, mais o corpo cansa, mais horas de sono ele pede, menos energia sobra para qualquer pessoa.

João Gabriel podia muito bem rir, mas não sabia exatamente do que estaria rindo ou se tinha razão para isso. Razão – ele pensou, atravessando a rua – palavra estranha essa, não é? Que não quer dizer coisa nenhuma. Quer dizer, quem intitulou o que é razão? Não dava para saber. Assim como não dava para saber quando uma pessoa tinha razão das coisas. Quem garante? Dois mais dois dá sempre quatro? Ser um bom garoto traz presente do Papai Noel no dia 25-de-dezembro? Amar sua mãe te faz ser amado? Ser um bom aluno te garante uma saúde perfeita? Que tal essa, doutor: tomar a porra dos remédios que você me receita, no horário e dose certa, garante que eu não surte?

Diversas Formas de Nós [COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora