Capítulo 8 - Claridade

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"Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão" Água Viva (Clarice Lispector) (p.14)

Os lábios de João Gabriel sangravam enquanto seus dentes fincavam com cada vez mais força na parte inferior de sua boca. Ele podia sentir o gosto de sangue, a fisgada de dor que o atravessava a cada vez que ele pressionava com um pouco mais de intensidade. Mas não importasse o quanto ele mordia, a luz ainda estava lá.

Os orientais defendiam que a luz era a salvação – era necessário agarra-la, quando morresse, ou você se perderia e teria de reencarnar para viver de novo (e de novo, de novo e de novo, até aprender o que realmente era importante). João ria da ironia, porque a luz sempre foi para ele sua perdição.

Ela sempre esteve lá, desde sua mais remota lembrança. Ela esteve lá durante seu aniversário de cinco anos, quando ganhara o bolo decorado com seu filme preferido na época. A luz estava lá quando ele ganhou o primeiro concurso de redação da escola, aos nove. A luz continuou lá quando não aconteceu nada de bom no ano de 1995, ano em que seu pai se separou de sua mãe. A luz permaneceu ali quando sua mãe entrou em depressão por conta do abandono, tendo que cuidar sozinha de um garoto de dez anos e uma garotinha de sete. A luz esteve lá quando ele recebeu o primeiro não de uma garota, o primeiro término de namoro. E o cegou, finalmente, um dia depois do vestibular.

Não era algo que aparecia nos momentos felizes. Era algo que sempre estava lá, anunciando a chegada da escuridão.

João aprendera a lidar com a luz, de um modo geral. Não que ele se sentisse à vontade, mas era menos pior do que o blecaute que vinha pouco depois. Então ele se agarrava a ela – enquanto mordia os lábios para não ser sugado para dentro de todo o brilho.

A pior parte é que quanto mais ele se agarrava a ela, mais forte ela ficava e mais difícil era não ser sugado. Uma relação que tinha tudo para dar errado – e que, por conta disso, frequentemente dava.

Mas o que mais João poderia fazer?

O filete de sangue escorreu pelo seu queixo, pelas falhas de sua barba ainda rala. Ele passou a mão para limpar e soltou um suspiro. Respirou fundo, enchendo seus pulmões com o máximo de ar que eles aguentavam. Então sua mão alcançou o copo de água que estava sobre a mesa, ao seu lado, arremessando-o em direção a parede.

Mr. Hyde havia sido despertado.

Houve primeiro um crack, quando o copo alcançou o concreto, então tudo explodiu e os cacos voaram para todos os cantos. A mente de João vacilou com o estrondo e ele piscou, ainda aturdido, vendo os pedaços de vidro caindo de uma maneira quase musical pelo chão da sala.

Então, antes que ele caísse, houve um pequeno click baixo, diferente da frequência que ele estava por toda aquela tarde.

João Gabriel piscou, tentando localizar de onde vinha a notificação que o mandara de volta para o eixo normal do mundo.

— Ah! – o som saiu da sua boca quando ele viu seu celular piscando sobre a mesa.

Dr. Jekyl havia assumido o controle, no último segundo.

Sua mão se esticou e ele pegou o aparelho para ver o que era.

De: Clarice Smiths Barcelos <clarisbarcelos@gmail.com>

Para: João Gabriel Lisboa <gaellisboa@ufbelo.edu.br>

Data: 09 de fevereiro de 2017 16:48

Assunto: TCC

As Leituras de Clarice – da literatura angustiante às legendas de fotos das redes sociais.

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