Capítulo 54 - A Redoma De Culpa

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A Clínica que João Gabriel foi enviado não era diferente de nenhuma outra que ele já havia passado – eram as mesmas pessoas sem rosto, com seus uniformes brancos demais, as mesmas paredes frias, as camas desconfortáveis, as sessões de terapia ocupacional que não levava ninguém a lugar nenhum. Tinha os mesmos tipos de pacientes – os que surtaram pela primeira vez, os que surtaram pela segunda vez, os que surtaram pela centésima sétima vez e os que não surtaram, ainda, mas estavam prestes a surtar.

Tinha, também, aquela dinâmica implícita e silenciosa, o remédio embaixo da língua, o jeito com que a maioria dos pacientes não engoliam e se livravam da dose, sem os enfermeiros percebessem, para ficarem menos dopado. As mesmas ameaças não ditas. Os mesmos olhares. E, eventualmente, as mesmas frases de sempre.

João Gabriel estava sentado no banco do jardim, o único lugar que ele achara para respirar em paz, enquanto lia um livro de romance muito, muito ruim. A biblioteca não era o melhor do lugar, mas também não era a pior. E aquilo era tão angustiante quanto o enredo mal escrito que ele tinha as mãos.

Felizmente, ele não precisava fazer aulas de pintura. Havia passado da idade. Ou talvez seu jeito explosivo quebrando todas as telas, no primeiro dia, tenha dito aos enfermeiros que era melhor não mexer com ele. João Gabriel era um paciente maravilhoso, se deixado quieto, solitário, dentro de si mesmo e de suas reflexões feitas embaixo do pé de jabuticaba do lugar.

Mas era um demônio incontrolável quando alguém o forçava a fazer qualquer coisa que ele não queria fazer.

— João – a enfermeira, de cabelos negros, que era a única que conseguia se aproximar dele sem receber um rosnado, interrompeu sua leitura.

Ele não sabia porque gostava dela.

Não havia nada de especial na mulher – exceto uma vulnerabilidade boa de se encarar nos olhos escuros, e no jeito com que ela não se portava, como se soubesse mais do que ele, sobre seus sintomas, ao encará-lo.

— Você tem visita – ela disse, arriscando um sorriso.

— Não.

— Você nem sabe quem é.

— Não estou interessado.

Ele sentiu que ela prendeu a respiração.

Nos últimos quinze dias, ele havia recusado todas as pessoas que ousaram visitá-lo. Pedro foi o primeiro deles. E ele realmente esperava que aquela enfermeira tivesse dado o recado inteiro, e não só o "sinto muito, ele não quer te receber". Não querer receber Pedro era eufemismo. Ele queria era que o ruivo se ferrasse, se fosse bem-educado.

Depois, foi Marcos. Ele disse não, dessa vez sem nenhuma grosseria. Ele não estava com raiva do coordenador do seu curso. Na verdade, Marcos merecia sua admiração. Ele havia, de fato, o defendido até as últimas consequências. Ele poderia tê-lo denunciado sobre Clarice, mas não o fez.

Pensar na garota fez o peito dele arder, por um instante, e ele ergueu o rosto para olhar a copa da jabuticabeira sobre si.

Como se soubesse que aquele era o momento propício para dizer, a enfermeira continuou:

— É uma garota chamada Clarice.

O rosnado da garganta dele saiu antes que ele tomasse nota, e a enfermeira recuou um passo, a única reação que transparecia que ela tinha medo dele. Sua hesitação não era respeito, não era sabedoria, não era consciência de que ela não sabia nada dele para lhe dizer como agir. Era temor. E não que ele pudesse culpá-la por isso – nos primeiros dias ele foi mesmo cruel.

Diversas Formas de Nós [COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora