Capítulo 46 - Entre Lençóis

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— O que na Irlanda foi tão bom? – foi a pergunta que escapuliu da boca de Clarice, quando os dois ficaram finalmente quietos e em silêncio na cama. Uma pergunta aleatória que nem ela sabia como havia formulado bem em sua cabeça, mas que só disse para ocupar sua mente e não pensar muito em tudo: no corpo de seu orientador abaixo do seu, na bagunça em sua volta, no silêncio da noite que ela poderia dizer que dançava entre eles. João Gabriel girou o rosto para encara-la. Na meia-luz, os olhos dele eram quase escuros – Você sempre fala de lá com um brilho diferente no olhar.

— Acho que é pela possibilidade de ser uma pessoa completamente nova.

Clarice arqueou a própria sobrancelha, apoiando-se no seu braço para olha-lo com mais atenção. A barba dele não escondia as marcas de cicatriz do rosto, da última queda dele. Mas as falhas na barba haviam lhe dado um ar ainda mais charmoso – como se isso fosse possível. João Gabriel parecia um protagonista de livros antigos de época: charmoso, rude, com um passado estranho e nenhuma propensão a relacionamentos profundos. Mr. Darcy se sentiria contemplado com uma amizade daquela.

— Em que você está pensando? – ele inclinou a cabeça para ela – Você sempre faz essa expressão quando pensa.

— Que expressão?

— Arqueia a sobrancelha, inclina a cabeça, o seu olhar desfocaliza um pouco até você concluir na sua mente alguma coisa e assentir de leve.

— Você é um bom observador.

— Sou um escritor – ele corrigiu – É função minha observar as reações das pessoas para tornar meus personagens mais verídicos.

— Afinal, sobre o que escreve? Seria muitas histórias clichês, onde o amor salva e transforma o outro no melhor que ele consegue? Com um brinde de casamentos e filhos no final?

— Com certeza – ele fez uma careta.

— Não, sério – ela tocou o peito dele, fazendo carinho – Fiquei curiosa. Sobre o que escreve.

— Nada de muito grandioso – ele encarou o teto, desviando o olhar – Tento apenas... bem, tento dar forma a alguns dos meus pensamentos. Mas como a maior parte deles não fazem o menor sentido, vira um romance nonsense que nunca vai sair da gaveta.

— Esse é o máximo que você vai falar sobre sua escrita?

— Pode apostar.

— Escritores – ela bufou – Vocês sempre acham que o que fazem é algo próximo a um trabalho de agente do FBI infiltrado, né? Ninguém próximo pode saber.

Ele a encarou de novo e seus dedos tocaram sua face, com carinho. A mão de João Gabriel era pesada, cheia de marcas, também, como quase todo o corpo dele, mas isso não fazia o carinho dele não ser delicado. E talvez fosse isso que deixava tudo melhor. Isso e o coração dela batendo desesperadamente em seu peito, claro.

Algo para lá de assustador, se ela fosse parar para ser sensata. Mas João Gabriel fazia a sensatez dela pular pela janela, assim que ele lhe sorria daquele jeito.

E Clarice nunca achou que foi tão feliz por isso.

— Se fosse algo que valesse a pena, Clarice, eu com certeza te diria sobre. Mas as únicas coisas que prestam de minha autoria você pode encontrar no meu Lattes. Pelo menos, nisso eu sei que sou bom.

Clarice revirou os olhos.

— Acho seus artigos chatos, se quer saber.

Isso fez o professor sorrir, e Clarice revirou ainda mais os olhos.

— Agora eu fiquei interessado – ele piscou – Sei que minha área nunca te interessou de verdade, e desconfio que seja muito porque sua mãe é uma maluca da literatura, estou correto?

Diversas Formas de Nós [COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora