Capítulo 48 - Dançando Sobre Cacos de Vidro

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Relacionar-se, muitas vezes, era dançar sobre cacos de vidro. Mas antes de ser uma dança, e antes de serem cacos de vidros, havia algo que foi quebrado e espalhado por todos os cantos da sala – algo que não poderia ser ignorado, por mais que se esforçasse, algo que nunca teria conserto. Não adiantava montar um quebra-cabeça, usar uma supercola, perder uma tarde inteira reconstruindo o que foi perdido: uma vez quebrado, sempre haveria uma rachadura.

João Gabriel sempre seria cicatrizes.

É verdade que o professor tinha, quase sempre, um discurso fatalista que nem sua psicóloga compreendia completamente. Não que ele pudesse colocar Fabiana como a pessoa que mais o entendia – João Gabriel desconfiava que a função da sua psicanalista não era compreende-lo, não era ter empatia, não era aceita-lo como ele achava que era – pelo contrário, cinco anos de terapia lhe mostrou que ela estava muito próxima daquela que jogava, sempre que podia, em sua cara o quanto não tinha pena dele. O que era bom, de um modo geral. João Gabriel nunca quis piedade de ninguém.

Talvez, se ele refletisse, concluiria que uma parte dele, a parte mais frágil, a que pertencia a João, queria amor. Uma outra parte, um pouco mais alegre, como a parte de Gael, queria normalidade. A parte que pertencia a João Gabriel Lisboa, no entanto, era indecifrável, inalcançável, indefinida e, em lato sensu, impossível.

Por isso, naquele instante, se ele balançasse a cabeça, poderia ouvir os barulhos dos cacos de sua mente dançando em sua cabeça. A dança que ele não conseguia fazer com ninguém e, provavelmente, não queria, porque aquela dança o enlouquecia de tais maneiras que, naquela segunda-feira, cinco dias depois da última vez que conseguira dormir por mais de quatro horas numa noite, João Gabriel não conseguia controlar.

Ele queria? – foi o que ele refletiu enquanto juntava suas coisas para sair da sala e ir em direção a sua famigerada terapia de todo começo de semana – Provavelmente, não. Se Gael era criativo e João era apático, o estado em que ele se encontrava naquele dia era aquele que já havia desistido de lutar consigo mesmo, porque, depois de dezoito anos, ele sabia que sempre perdia. E qualquer coisa no mundo – qualquer solidão e ferida – era mais suportável naquele estado do que o que vinha logo depois. E ele faria de tudo para impedir que o logo depois se aproximasse. Doa a quem doesse. Destruísse o que destruísse. Machucasse o que quer que machucasse.

Era uma questão de sobrevivência.

E de sobrevivência, João Gabriel Lisboa, phD em Literatura Moderna, entendia muito bem.

— João – a voz de Clarice o atravessou antes que ele conseguisse fugir, praticamente ileso, daquele dia – Posso falar com você?

Ele colocou o relógio no pulso e encarou a garota.

Era difícil compreender o que, em Clarice, lhe afetava tanto. De um modo geral, ele foi um cara que passou pelas experiências de emoção o melhor que poderia. Ele sabia quando se afastar e quando se aproximar, com tamanha eficiência que, se ele refletisse, não se lembraria qual foi a última vez que qualquer relacionamento lhe machucou. Ele não poderia dizer o mesmo sobre qual foi o último relacionamento que ele machucou alguém – mas João Gabriel nunca parava para pensar nisso, muito porque era insuportável perceber-se como era realmente, por trás de todas as máscaras, e mais porque, do fundo do seu coração, ele estava pouco se lixando para a outra pessoa.

— Você tem cinco minutos – ele pegou o seu copo térmico – Alguma coisa sobre seu TCC?

— Não – ela negou, os cabelos castanhos balançando sobre o ombro. A garota piscou os olhos várias vezes, o ponto jabuticaba quase cinza com a velocidade que os cílios batiam, enquanto mordia levemente seu lábio inferior. Ela estava nervosa. Ele quase sorriu – É sobre... hm... isso – e levantou o trabalho.

Diversas Formas de Nós [COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora