11 de setembro de 1986

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2h20 da madrugada

Querido Diário,

Nem posso lhe dizer quanto me chateia não ser uma ameaça para ele.

Ele está muito seguro com a certeza de que sempre pode entrar na minha casa e sair impunemente, sem nenhum ruído. No escuro, ele sabe que vai conseguir agarrar meu braço com força bastante para me calar, e levar-me, como uma criança arrasta sua boneca, a um lugar onde ninguém me encontrará. Ele sabe disso porque esse lugar está a quilômetros de qualquer outra fonte de luz além daquela que emana de vez em quando, isso é tão claro em minha memória, de seus lábios e dos olhos - a luz que é roubada de dentro de mim. A garota que, desde que pode se lembrar, esforça-se pacientemente para tolerar, para fazer segredo sobre o próprio homem que quer roubar sua inocência, não permitindo jamais que ela amadureça, não lhe permitindo jamais os prazeres da maturidade.

A fase com a qual essa garotinha tem sonhado desde que aprendeu a pular, a correr, a sorrir até para a mais suave brisa, o jeito como essa brisa a acaricia. Generosamente ela vem se dando sempre, esvaziando o delicado cesto que há dentro dela, de sua alma.

Espero poder chamá-lo logo à minha janela. Tenho medo de que ele esteja esperando por mim, cansado demais dessas noites inteiras escrevendo em você. Esses momentos em que eu fluo para dentro e para fora de uma parte de mim que planeja abrir a janela desta vez e estender minha mão ansiosamente. A parte de mim que duvida que algo realmente exista e que de agora em diante não há mais nada a temer para lá dessa janela, e por isso estou querendo me aventurar no lugar de sempre, sem luta. Eu que juro que um ruído ou um poderoso tapa na cabeça não causará sequer a menor alteração nos passos. A parte de mim que tem ensaiado pedidos de muito mais incisões, mais inserções, mais insultos e ameaças, e planejou continuar com isso até que o apetite dele, antes insaciável, comece a diminuir. O animal petrificado diante do cano de sua arma, implorando para preencher o espaço vazio em sua parede de troféus.

Elimine a excitação. Programe-se. Haverá dor, mas nada pior do que já foi. Agarre-se à imagem de seu lar e de sua cama, e do cheiro gostoso dele quando você lava, lava, lava. Sua casa espera por você como sempre o fez.

Brinque com ele como ele brinca com você. Aceite que é suja, má e barata e deve ser atirada aos lobos como carniça, e jamais poderá ter filhos, porque quem sabe quais seriam suas características ocultas desde o nascimento até a morte... Não se esqueça de ignorar.

Deixe um espaço interior bastante amplo para receber o peso do corpo dele com todo o ódio e métodos de redução que apenas se aplicam às porções emocionais de cada um, as mais vitais e insubstituíveis de todas.

Acredite que ele só está intrigado com o medo que ele provoca, com a falta de interesse que você demonstra pela vida quando ele a deixa novamente sozinha em seu quarto. O modo como ele finge tocar a campainha, caçoar de você, da sua vida, das suas esperanças, das suas inseguranças mais íntimas; ele observa enquanto você luta contra a sensação de que não vale nada, de sequer poder entrar na casa onde você deu seus primeiros passos, como se ele estivesse observando você reter uma lágrima antes de ela sair de seus olhos - olha para ele e já não o vê mais ali.

Como se já fosse uma religião, eu entoei inspirações a mim mesma, porque há dias que venho implorando, insultando, e quase querendo que ele venha, e ele não vem. Sinto uma terrível dor de cabeça ao tentar pensar na fraqueza dele, quando, de fato, eu não poderia começar a conhecê-las. Talvez eu também esteja errada a respeito do tesão que ele sente só pelo medo desta sua determinada vítima... Preciso dizer sinceramente, estou cansada de tentar entender esta situação, e acredito que, se eu não dormir logo, vou começar a ver BOB em todo lugar. Isso, devo dizer, não seria bom para mim agora.

Estou sozinha aqui, e me vejo pensando em Bobby, que me envolveria em seus braços de um modo que não posso imaginar mais ninguém fazendo.

Tenha cuidado, Laura

O diário secreto de Laura PalmerOnde histórias criam vida. Descubra agora