Dia de Natal, 1987

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Querido Diário,

Estou na sacada, tentando sintonizar os cânticos natalinos em minha cabeça. Mamãe os tocou a manhã inteira. Gosto do Natal, mas com minha cabeça como está, mal posso suportar. Papai me pegou quando eu estava saindo e pediu para dançar com a sua garotinha preferida. Acho que há anos papai e eu não dançamos.

Lembranças das festas em Great Northern, o borrão das bandeiras e dos pratos e dos cristais entrando em minha cabeça, como eu os via quando papai e eu rodávamos e rodávamos. Ele me girava com uma velocidade que fazia meu estômago saltar, e nós ríamos, ríamos, ríamos.

Essa dança desta manhã foi na sala de visitas. As luzes das árvores já estavam acesas para que mamãe pudesse preparar as comidas dentro do verdadeiro espírito natalino, e eu olhava o vermelho, o verde e o azul passarem por mim. Olhei dentro dos olhos de papai para não ficar muito tonta, e vi que eles se acenderam, e uma lágrima se formou e escorregou devagar pelo rosto dele. O giro diminuiu e ele me abraçou com força, segurando-me como se temesse alguma coisa.

Mamãe veio da cozinha e disse que ver papai e eu abraçados daquele jeito na frente da árvore de Natal era o melhor presente que ela poderia receber. Muitas coisas estranhas acontecem na vida. Na minha vida, quero dizer. Poucas horas antes daquela dança eu estava no meu quarto mergulhada num mundo completamente diferente. Espero jamais ter que escolher entre esses dois mundos. Cada um me faz uma pessoa feliz por diferentes motivos. Vim para cá para escrever a minha fantasia, mas está meio frio e bonito demais para pensar nisso agora. Pelo menos aqui e agora. Vou até o Double R para beber um café quente. Talvez encontre um reservado só para mim.

Volto logo.


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Mais tarde!

Querido Diário,

Quando cheguei aqui, no Double R, imediatamente Norma me serviu uma xícara de café.

Perfeito. Disse a ela que queria escrever algumas coisas particularmente, algo para a escola, por isso vim para o reservado em vez de ficar no balcão.

Antes de me sentar, peguei minha xícara de café no balcão e notei uma velha muito quieta, sentada dois bancos adiante. Ela estava mergulhada em um livro cujo nome era Mortalha da Inocência. Ela virou a página, completamente absorvida pela leitura.

Vi em seu prato que ela tinha comido um pedaço de torta de cereja e começava a beber um café.

Olhei para Norma, que sorriu, e eu balancei a cabeça como se dissesse "Que figura!" Uma senhora de rosto bonito e delicado, que saíra para comer uma torta, beber um café e ler um livro. Fui para o reservado e me sentei a uma boa mesa. Já ia começar a escrever minha fantasia, quando... Shelley Johnson surgiu do cômodo dos fundos.

A mulher de Leo é mais bonita do que eu me lembrava. Olhei para ela. Examinei cuidadosamente seu corpo se mover, seu sorriso, sua voz. De repente me vi hesitar entre entrar numa disputa ou não ter nenhuma chance com ela. Então ouvi ela dizer alguma coisa a Norma sobre Leo. Algo como ele nunca estar em casa, ou quando está querer sair. Eu tinha vencido.

Senti-me uma puta por estar pensando nisso, mas pensei, porque já há um bom tempo vinha fazendo isso com ele... E vou continuar se ele quiser. Sei que não era a isso que ela se referia, mas senti muita pena dela, ou jamais conseguiria ver Leo novamente. Eu não sabia como lidar com essa situação.

Fiquei observando a velha no balcão tentar se levantar para sair.

Obviamente era difícil para ela, e por um instante senti vontade de ajudar... mas Shelley se adiantou.

Norma trouxe outro café e disse que aquela mulher ia muito lá, mas tinha muita dificuldade de se movimentar. As muletas ajudavam, mas ela lutava para dar cada passo, como eu podia ver.

Norma disse também que há muitos velhos em Twin Peaks que não têm quem cuide deles.

Não há para onde mandá-los... a menos que seja em Montana. A maioria preferia ficar aqui mesmo. É mais tranqüilo. Em geral eles se sentem bem. Isso ficou na minha cabeça. Um problema para ser solucionado. Eu poderia fazer mais do que ajudar a mulher a chegar até a porta! Ah, a Laura competitiva, frente e costas. Nunca mais tinha me sentido assim desde a escola primária. Fiquei animada em descobrir um jeito de ajudar os velhos que Norma mencionou.

Deixei um bilhete para Norma quando paguei a conta. Disse que gostaria de conversar mais sobre um jeito de ajudar aquelas pessoas. Pedi a ela que me telefonasse quando pudesse.

Vou tentar pegar uma carona até a casa de Johnny com Ed Hurley. Posso vê-lo daqui de dentro. Espero que ele esteja indo para aquele lado.

Logo nos falaremos, Laura

P.S.: Natal, à noite. Mais tarde eu conto, mas ouvi alguma coisa sobre "um telefonema que

perturbou Norma", na cafeteria.

Quando eu estava com Johnny ouvi Benjamin falando com o xerife ou algo assim. Vou tentar saber o que foi mais tarde porque Benjamin ficou muito chateado com isso.

Sei que Norma não me telefonaria logo porque Hank, o marido dela, a quem eu nunca vi muito apaixonado, matou um homem na estrada ontem à noite, acho que quando voltava do Lucky 21, na fronteira.

Seja como for, ele vai passar um tempo agora envolvido com um processo de homicídio culposo. É bom que ele fique um tempo longe. Parece que Norma está sempre mal com ele.

Sinto muito por ela. Não por ele.

O diário secreto de Laura PalmerOnde histórias criam vida. Descubra agora