Capítulo XIX
AllysonTrês horas haviam se passado desde que saímos as presas do hotel. Já era para Mike ter trocado a direção, mas ele se recusou a isso. O garoto não tirava os olhos da estrada. As vezes passava pela minha cabeça que o corpo dele poderia estar ali, mas com certeza os pensamentos não. Brook, que sentava ao seu lado seguia a viagem com a mesma expressão mórbida e preocupante. Mas não posso julgá-los .
Mais uma vez fomos fracos e covardes. Mais uma vez apenas saímos correndo. Literalmente fugindo de nossos problemas, e o pior é que mais uma vez saímos derrotados. Será que nunca vamos conseguir vencer da psicopata que nos persegue? Será que nunca conseguiremos vencer um simples exército de lata? Por que parece que Raven está sempre um passo a nossa frente?
Sei que todos compartilhamos do mesmo sentimento. Uns mais, outros menos, mas frustação e derrota é algo de que não conseguimos nos livrar.
Noah e Bob estavam sentados lado a lado junto comigo e Jack no banco de trás. Estávamos consideravelmente apertados ali, mas era o máximo que podíamos fazer já que perdemos nosso carro. Todos os três descansavam um pouco, mas eu estava preocupada com um especificamente. Jackson.
Ele estava ali, literalmente jogado no banco. Seus braços contraídos por causa da falta de espaço e sua cabeça densa para o lado batendo e chacoalhando no vidro pelo movimento do carro. Seus olhos estavam fechados, e a sujeira em seu rosto o deixava com uma feição péssima. Ele não se mexia, e por um breve momento até pensei que estivesse morto, mas o alivio me invadiu quando percebi o movimento de seu peito, subindo e descendo lentamente.
Voltei meus olhos para a estrada a nossa frente. O dia seguia despreocupado, como se nada tivesse acontecido. Observei por um tempo as árvores e casas que passavam rapidamente por nós enquanto seguíamos, e pensei o quão bom seria ficar um tempinho despreocupado de tudo, sem medo de ser morta se baixar a guarda por apenas um minuto. Quando passamos por uma pequena casinha de madeira, aonde uma família brincava e conversava próximos a varanda, imaginei que seria divertido estar ali, com companheiros e familiares, sorrindo, contando piadas. Por um momento vi eu mesma ali, com Jack, Brook, e os outros. Apenas vivendo um dia comum entre amigos, talvez até a comemoração de uma data importante, ou apenas um encontro marcado para passar o tempo. Quem sabe até assistir a um jogo na televisão. Afastei esses pensamentos fantasiosos, pois por mais bom fossem, era apenas aquilo. Uma fantasia.
Fora isso a preocupação com tudo que estava prestes a acontecer não me deixava. O fato de saber relances do futuro me atormentava. Por que isso? Mas se já não bastasse tudo que tenho para pensar, a dor de cabeça por causa da batida que Tenebris me deu me perseguia. Ainda assim podia sentir uma pontada de dor insuportável bem no alto da testa, e de relance conseguia ver o hematoma roxo pelo espelho retrovisor do automóvel. Sentir o latejo percorrendo cada centímetro do meu crânio era um tanto preocupante e incomodante, mas apenas ignorei isso.
O silencio do carro era compreensivo, ninguém estava a fim de dizer nada, mas por outro lado também era enlouquecedor. Era como aquele sentimento que você sente quando acaba de conhecer a pessoa e parece que o assunto acabou, e ambos ficam em silêncio e essa sensação tensa incomoda. Exatamente como naquele momento. Até mesmo o rádio, que costumávamos deixar ligado durante as viagens, parecia ter aderido a quietude. Mas por mais tensa que estivesse, resolvi quebrar aquilo.
- O que vamos fazer agora? – Minha voz saiu roca e quase inaudível no começo da frase.
- Vamos seguir o plano. – Noah disse ainda imóvel e de olhos fechados. Pensei que ele estivesse dormindo, mas me enganei.
- Mas, – Limpei a garganta antes de continuar. – O que faremos em relação aos autômatos? Quer dizer, eles claramente não estão mais se importando com quem está em seu caminho.
- Sim, mas só podemos fazer uma coisa. Seguir o plano. – Ele deu uma pausa. – E tentar envolver o mínimo de pessoas possíveis em nosso trajeto.
Sabia que o conselheiro estava certo. Mas não sabia como faríamos isso.
Voltamos então para aquele antigo sentimento de medo. Guiado apenas pelo som abafado das rodas do Jeep sobre o asfalto.
Olhei para Jack novamente, com a esperança de que ele pudesse me abraçar assim como ele fez noite passada quando descobriu sobre meu probleminha. Mas desisti quando lembrei de seu estado. Com canto do olho vi algo em seu bolso, mas só percebi o que era quando o toquei. Era inacreditável. Não importa o que acontecesse ele sempre carregava aquilo para cima e para baixo. Nós havíamos saído às pressas do hotel, nem se quer pegamos nossas coisas, mas ele ainda carregava o pequeno aviãozinho de madeira junto a si. E ele estava ali, no bolso de Jack.
Isso me fez lembrar o que por uns instantes eu havia esquecido: Simon. Aquele pequenino e inocente garoto quase matou Jackson, e isso teria realmente acontecido se Bob não tivesse o nocauteado. Mas todos nós sabemos que aquele não era o Simon. Não, não era. Raven estava o manipulando, o garoto não tinha como não fazer aquilo, mas saber disso é talvez o que mais dói.
Devagar, tentei pegar o brinquedo de seu bolso, sem o acordar, mas não funcionou. Jack despertou assustado e fez um movimento brusco, mas pequeno.
- Calma, sou eu.
Ele me olhou e depois fez uma cara de dor, como se tivesse lembrado que estava acabado. Pressionou a coxa da perna esquerda com a mão e olhou para baixo, mas logo desviou o olhar para cima e apertou os olhos fazendo uma expressão dolorosa.
- O que foi? – Disse preocupada.
Ele não respondeu, apenas continuou quieto, então fui averiguar por mim mesma. Levei meus olhos a sua perna, mas não vi nada. E só quando olhei mais adiante, para seu tornozelo, percebi que sua calça estava encharcada de sangue.
- Jack! Meu Deus! Você está sangrando! – Esta frase acabou despertando todos de seus pensamentos.
- O que foi? – Perguntou Mike alterando o olhar da estrada para o banco de trás e do banco de trás para a estrada novamente.
- Eu... Eu estou bem. – Jack tentou convencer-nos.
- Não, você não está nem um pouco bem. Deixe-me ver isso. – Digo me abaixando e levantando a barra de sua calça com cuidado. Ele geme de dor quando o tecido raspa em sua pele, e então eu desisto de continuar.
- Aqui. – Noah pega uma faca de seu cinto e me entrega. – Use isso.
Rasgo o jeans com a lâmina afiada e quando consigo ver o ferimento me espanto. Sua pele estava rasgada em diferentes lugares. Os rasgos não eram tão profundos mas estavam feios, com a pele levantada e aberta, correndo um pequeno risco de infeccionar se continuassem expostos daquele jeito. Além disso havia sangue por toda parte, encharcando até mesmo a barra de sua meia que desaparecia dento do calçado. Os ferimentos formavam um círculo quase perfeito, e parecia como se aquilo fosse uma mordida. Uma mordida bem grande e violenta.
- O que aconteceu? – Digo rasgando um pedaço da manga de minha blusa para usar como bandagem.
- Um maldito homem de lata. – Ele diz entre caras e bocas.
- Um Ônix fez isso? – Ele confirmou com a cabeça.
- Esses caras tem dentes bem afiados.
Então confirmei tudo o que eu estava pensando. A prova estava bem ali. Eles não estão mais ligando para o que acontece. A partir de agora estamos literalmente entre a vida e a morte.
- Isso vai doer um pouco. – Aviso-o quando pego uma garrafa de água que estava no porta copos do veículo e derramo o liquido para limpar a ferida.
Ele faz mais uma careta e retrai o corpo, mas aguenta até o final. Pego o pedaço da manga de minha blusa que havia rasgado e enrolo ao redor de seu tornozelo, apertando com força para estancar o sangramento.
- Ele vai precisar de socorros melhores que estes. – Digo. – Estamos chegando?
- Mais umas duas horas e meia, mais ou menos. – Noah me responde.
Olho para Jack esperançosa.
- Consegue aguentar?
Ele diz que sim com a cabeça e logo depois contrai o rosto em mais uma expressão dolorosa. De repente começamos a desacelerar.
- O que foi Mike? – Pergunto.
- Aqueles militares pediram para pararmos.
- Militares? – É só então que percebo que haviam três homens e uma mulher do lado de fora do carro se aproximando lentamente de nós enquanto parávamos.
Eles estavam devidamente uniformizados com fardas militares. As roupas cheias e camufladas, os coletes, as botas escuras e até mesmo as armas ao alcance das mãos. Um deles bate com o dedo no vidro e espera. Michael abaixa a janela do carro.
- Documentos do veículo por favor.
- Documentos? – Ele se fez de desentendido. – Ah, sim. Claro. – Ele procurou nos bolsos e nas laterais da porta. Mas não achou. – Sabe o que é senhor, eu... eu acho que os deixei em casa. Sabe como é, saímos às pressas e eu devo ter...
- Saiam do carro. – Ele disse autoritário.
- Como? – Mike tentou, mas não teve êxito.
- Eu mandei saírem do carro! – O militar abriu a porta do Jeep com raiva e puxou Michael pra fora.
- Calma, calma.
- Vocês também! Vamos! – ele se referiu a nós.
Saímos do carro praticamente obrigados a isso, os oficiais eram rancorosos e secos. Um deles abriu a porta do lado de Jack, e o garoto quase caiu por causa da surpresa.
- Ele está ferido! – Advirto o militar preocupada com Jackson.
O homem o segura e o ajuda a sair do carro. Em seguida o leva até o lado que estávamos e o apoia no veículo. Estávamos lado a lado um do outro. E provavelmente a mesma coisa passava por nossas cabeças. Não temos tempo para interversões rotineiras do governo dos Estados Unidos da América, precisávamos chegar a Las Vegas o mais rápido possível.
- Então... – O mesmo homem que nos mandou sair do carro começou a dizer. – Dirigindo um carro que foi dado como roubado hoje pela manhã, sem a habilitação ou documento do veículo, com superlotação e um passageiro ferido. – Ele sorri debochadamente. – Como eu queria botar uma bala na cabeça de vocês neste exato momento... – O oficial articula com a mão em forma de arma. – Mas Raven não gostaria nem um pouco disso.
Aquilo com certeza foi um choque para todos. Eu não acredito! Mais uma vez Raven estava um passo a nossa frente, armando mais uma armadilha que nós cegamente caímos. Aquilo não era apenas uma parada dos militares. Aquilo era mais um jogo de pega-pega.
- Vocês... vocês são Ônix. – Michael Chuta.
- Não garoto, não fazemos parte dos cabeças de lata de Raven. Somos apenas humanos. – Ele falava pausadamente e calmo, pensando antes de dizer qualquer coisa, enquanto tirava suas luvas. – Humanos de mente aberta, que sabem que o mundo está indo por água a baixo e precisamos fazer algo a respeito.
- E o seu algo a respeito é ajudar uma psicótica? Você sabe o que ela está planejando? – Noah toma a palavra. – Se essa maluca conseguir pôr as mãos nos armamentos nucleares que ela quer, podemos dizer adeus a tudo e a todos que conhecemos. Será o fim!
- Será o fim para aqueles que não escolheram o lado certo, Noah. – Ele o corrige.
- Aonde está sua honra? A honra de vestir este uniforme?
O homem ri sádico.
- Honra? Eu nunca fui muito honrado sabe, mas logo isso não vai mais importar, e a honra – Ele enfatiza essa palavra. – Estará naqueles que fizeram a coisa certa.
- E esta coisa certa seria acabar com a paz e com a vida de bilhões de pessoas?
- E O QUE VOCÊ SABE SOBRE O QUE É CERTO DE SE FAZER, NOAH? – Ele se irou e virou rapidamente de frente a nós, mantendo os olhos fixos e frenéticos no conselheiro.
- Eu fiz a coisa certa a partir do momento que deixei aquele lugar.
- Não. – O militar se aproximou e ficou cara a cara com ele. – Nós dois sabemos que foi a partir daí que você começou a errar. Você realmente fugiu por não concordar com o que Raven estava fazendo, ou saiu correndo por medo?
- Do que está falando?
- Medo! Medo de ser um alvo, medo de perder, medo das coisas saírem do seu controle.
- Cala a boca! Eu abandonei o covil porque aquilo era assassinato!
- Você está andando com assassinos em grandíssimo potencial, não acho que tenha mudado tanto assim seus horizontes.
- Os Sensitivies são humanos, e eles podem curar! Só precisam dos incentivos e ingredientes certos!
- E a quantos anos estão procurando esses ingredientes? E já chegaram perto de descobrir? Ah é, não!
Noah bufou e tentou se mover mas o homem o segurou com força pelo pescoço contra o carro. As veias de suas mão saltavam enquanto o apertava.
- Senhor. – A mulher se aproximou guardando o comunicador e ajeitando a arma que carregava. – Estão a caminho.
- Ótimo! – Ele insistia em continuar estrangulando o conselheiro.
Num súbito ato de loucura toco sua pele fria e áspera e no mesmo instante as memorias de seu passado passam como um filme sobre meus olhos e ele fica imóvel.
- Senhor? – Um dos soldados se aproxima. – O toco no pescoço, aonde estava descoberto de qualquer roupa e mais uma vez algo estranho acontece, vejo como aquele homem vai morrer, vejo a cena perfeitamente em minha mente, como um flash.
- PARADA AI! – O outro recua um passo e pega na arma, mas eu já estava próximo o suficiente dele para repetir o mesmo ato. – Vejo ele com duas crianças pequenas e uma mulher num caixão.
Com os três imóveis e jogados no chão, só falta mais uma, mas acho que ela foi tão rápida quanto meus pensamentos. Ouço um disparo e no mesmo instante uma dor rasga meu ombro por trás. Então os gritos invadem a cena, minha visão embaça, meus sentidos se embaralham e então caio no chão e o sangue imediatamente escorre e molha meu cabelo e minha nuca.
- VOCÊS, NÃO SE MOVAM! – A militar aponta a arma para o restante do grupo e se aproxima lentamente.
Brook me olhava pasma, com olhos lacrimejando. Os garotos tiveram uma iniciativa para me ajudar, mas foram contidos pelos disparos que seguiram da oficial no ar, obrigando-os a não se mover.
- EU MANDEI NÃO SE MOVEREM! – ela gritava as ordens novamente.
Eu precisava fazer só mais uma coisa, mais uma vez e pronto. Mas ela ainda estava um pouco longe. Tento me arrastar em sua direção, mas ela aponta a arma para mim.
- VOCÊ TAMBÉM!
E quando pensei que não tinha mais jeito, Noah parece entender o que eu queria fazer. Ele a chama a distraindo.
- Não precisamos acabar deste jeito. – Ele diz.
- Cala a boca! Os Ônix já devem estar chegando.
- Por que você está fazendo isso? Por que está ajudando Raven?
Me arrasto novamente, e ela parece não perceber o movimento. Ótimo. E assim, fui lentamente rastejando ao seu encontro.
- Porque o mundo sem essas aberrações ambulantes será muito melhor.
- Você prefere um mundo sem aberrações, mas a maior delas está te controlando.
- Eu não estou sendo controlada por ninguém! Raven e eu concordamos com algumas coisas, por isso estou a ajudando.
- Com o que você concorda com ela?
Infelizmente não podemos ouvir sua resposta. Já estava perto o suficiente para levantar sua calça e tocar em seu tornozelo. Quando fiz isso ela se assustou e disparou novamente contra mim, mas desta vez a bala apenas raspou em minha bochecha. Ainda bem.
Quando a toquei, vi um mundo horrível. Um beco, uma escada de incêndio, um homem velho e gordo jogado no sofá, uma criança sendo explorada e abusada, tudo como fleches de um passado.
- Ally! – Brook se moveu rapidamente ao meu encontro quando percebeu que a mulher não era mais uma ameaça. – Ally, amiga, fale comigo!
- Calma Brook. – Digo entre um respirar e outro. – Eu... eu estou bem.
Menti descaradamente, era obvio que não estava. A dor no meu ombro era horrível, era como se um fogo ardesse incansavelmente dentro do ferimento. Nessa altura eu já estava banhada em sangue e minha visão estava turva e embaçada, mas precisava tranquiliza-la.
- O que você tinha na cabeça?
- Alguém precisava... – Senti um enjoo repentino. E inesperadamente vomitei aquele sangue negro novamente.
- ALLY! ALLYSON!!! – Ouvi ela me chamando, mas minha visão escureceu.
Antes de me entregar totalmente a escuridão pude ouvir e sentir os outros me ajudando e me colocando no carro. Depois disso a ignição do motor e então o silencio absoluto.
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Sensitive - Iniciados
Science Fiction"Dizem que existem pessoas que não estão nesse mundo por acaso. Que algumas nascem diferentes pra fazer a diferença, e por mais que tentem esconder-se, o universo da um jeito de revela-los. São esses são os chamados "escolhidos". Após uma nova ordem...