UTI ( Unidade de Terapia Intensiva )

667 14 5
                                    

Marcelo

Acordei. De um lado, um caninho com um líquido amarelo que entrava em minha veia; do outro,um com sangue. Na boca,um acoplado,aqueles aparelhinhos de respiração artificial que já conhecia do Fantástico. Muito eficiente, fechava a boca com a língua,mesmo assim o ar entrava. Tinha uma sanfoninha pendurada que enchia e esvaziava. Assoprava e ela nem se tocava,enchia e esvaziava...
Fiquei curtindo o bicho:como é gostoso respirar sem fazer força,enchia e esvaziava... Passei a reparar no ambiente. Era uma sala pequena, com luz fria. Não sabia se era dia ou noite,porque não havia janelas,só paredes brancas. A minha esquerda, dois leitos.Tentei me erguer,mas não consegui.

É mesmo,não mexia nada. Lembrei do acidente,só podia estar no hospital. "O que aconteceu comigo?Será que fui operado?Será que é por causa da bebida que estou assim? Algum trauma devido a batida na cabeça?" Ouvi vozes e percebi que havia gente na sala. Comecei a balançar o pescoço pra chamar a atenção. Veio uma enfermeira e perguntou se tava tudo bem.

--Eh,eh,eh...
Perguntou se eu queria tirar o aparelho. Fiz um gesto afirmando,ela pediu pra esperar um pouco e saiu.Nunca sentiria tanta falta da minha voz. Precisava saber se era sério o que tinha acontecido,queria falar,ouvir,e naquela sala não havia nada. À enfermeira voltou com mais dois caras. Perguntaram se eu seria capaz de respirar sem sanfoninha. Era óbvio que podia,afinal de contas eu tava absolutamente acordado. Minha boca livre,perguntei o que havia acontecido. Responderam que eu fora operado e que estava tudo bem.

--Como assim ?

--Mantenha-se calmo e com um pouco de paciência, que você vai pra casa logo M. Tua mãe teve aqui,mas voltou pra São Paulo,porque já é tarde.-a enfermeira disse com calma.

--Que horas são ? - perguntei

--Três da manhã.

--Tudo isso? Mas o que aconteceu? Por que acordei só agora?Quebrei alguma coisa?Por que é que não me mexo?- clamei angustiado.

--Calma,amanhã cedo virá o médico que te operou,e você vai saber de tudo. Nós estamos aqui pra te ajudar,tente dormir e descansar,que já,já você fica bom.

Acordei com uma pessoa cantando. Era uma enfermeira. Vinha vindo direto pra mim, como se me conhecesse há muito tempo.

-- E aí Marcelo, tudo bem? Eu sou a Elma. Aguenta um pouquinho que nós vamos te dar um banho.

Ela era baixinha, gordinha, dessas com uma cara simpaticíssima.
Não  entendi direito aquele banho. Será que vão me colocar  num chuveiro? Mas como? Se eu não me mexo. Imagino que não conseguiria ficar em pé. Podem me pôr numa banheira, mas com esses caninho vai ser meio difícil. Estava meio confuso, mas conseguia pensar direito. " Será que vai demorar pra mexer alguma coisa? Pode ser que dê pra mexer alguma coisa, pode ser que dê pra ficar em pé, que merda não entender nada de medicina. Além do que, esse liquido amarelo que entra na veia deve ser algum tranquilizante, é que eu tô meio de barato, com a boca seca e formigando."
Apesar de sozinho lá deitado, dava pra sacar que a movimentação será  intensa. Veio  um crioulo com uma bandeja na mão:

-- E aí meu irmão, como é que é, tudo firme? Fica frio, não esquenta não, porque se você esquentar a cabeça, caspa vira "mandiopan".

Fiquei imaginando um cara começando a ficar nervoso, vermelho, a cabeça pipocando ploc ploc ploc...
Até hoje não sei porque comecei a chamar esse crioulo de Ding Dong. Era o nome do percussionista do meu conjunto, só que era branco. Acho que foi uma forma carinhosa e chamar um crioulo de King Kong sem racismo. Lembro-me que ele adorava quando eu o chamava de Ding Dong e, apensar de não ser sua função, ele vinha todo o dia, punha a bandeja e falava:

-- Olha, senão caspa vira mandiopan.

Veio outro crioulo, esse se chamava Divino, molhou uma toalha na água e começou a passar no meu corpo. Perguntei se era aquilo o banho.

-- É, meu irmão. É uma banho de gato, só que ao invés da língua é essa toalhinha.

Eu não podia ficar de bruços, e, para lavar as costas, ele chamou a Elma. Me viravam de lado, ela segurando e ele lavando. O crioulo ficou esfregando a toalha na minha bunda e depois enfiou a mão numa luva de plástico e pôs o dedo no meu cu, para tirar o cocô. Eu morrendo de vergonha, mas ele nem aí. Já devia estar acostumadíssimo.

Só agora percebi que estava num colchão de água. Enxugaram- me e me cobriram. Elma mandou-me esperar um pouco, porque tinha que dar banho em outros pacientes. Disse que logo depois viria dar o café da manhã e bater um papo.
  "Que loucura,o que está acontecendo? Eu aqui deitado, sem poder me mexer. Essas pessoas que nunca tinha visto antes, esse lugar, o que é tudo isto afinal? A única certeza que tenho é que estou vivo e muito lúcido. Consigo me lembrar perfeitamente do acidente, do meu passado, de tudo, enfim. Minha cabeça está a mil por hora e eu aqui paralisado: não poderia ter acontecido algo tão sério assim, será?"
Senti que só existia uma coisa funcionando em mim. Era como se fosse uma cabeça em cima de uma bandeja. Qualquer balançada que desses, a cabeça cairia da bandeja e sairia rolando como se fosse uma bola. Cairia no chão e continuaria rodando, rodando, rodando, rodando...

-- Até que você é bonito.

--Porra, Elma, o que está acontecendo?

--Nada, vou começar a dar café para você agora.

--Eu preciso falar com alguém.-Eu disse

--Tua mãe ligou e está vindo de São Paulo. Deve chegar daqui a pouco.- falou ela

E foi me dando com a colher um café com leite e pão amassado dentro. Fiquei um pouco mais calmo e imaginei minha mãe preocupadíssima.

"Como será que eles reagiram á noticia? Será que minhas irmãs já estão sabendo? E o pessoal de Campinas.?"

Finalmente chegou minha mãe, primeira reação que tive foi a de sentir vergonha pela cagada que havia feito: me atirar num lago de meio metro, bêbado.

--Você quebrou a quinta vértebra aos músculos por estímulos nervosos: enfim, o cabo que liga o telefone de uma casa à central telefônica. O que aconteceu foi que caiu um poste no meio da rua e todos os telefone de um bairro ficaram sem funcionar, apenas da central telefônica estar inteirinha.

-- Quer dizer que os meus braços são o Jardim Paulista e as minhas pernas o Ibirapuera?

-- É, filhinho, mais ou menos isso.-disse minha mãe.

--Eunice, falando sinceramente, eu fico bom? Diga a verdade! - disse chorando.

Eu Espero que isso tudo passe logo, eu espero...

Feliz Ano Velho Onde histórias criam vida. Descubra agora