parte 2

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  Passei anos da minha vida sem saber se tinha ainda um pai ou não. Lembro-me até que, um dia,já morando em Santos, pensei ter ouvido minha irmã gritar "papai". Saí correndo feito um louco, rodei pela casa toda, fui pra rua, procurei por todos os cantos, mas não o achei. Ainda com uma tremedeira no corpo fui perguntar pra minha irmã. Era engano meu. Ninguém tinha gritado. Sonhei centenas de vezes com meu pai chegando um dia. Mas foram sonhos. Quando viemos morar em São Paulo, três anos depois, já estava conformado com o fato de que realmente eu era órfão. 

Depois da anistia ficou-se sabendo das barbaridades cometidas nos porões dos quartéis. Até soube que um repórter, que estava próximo do ex-Presidente Médici no aeroporto de Recife, ouviu alguém dizer que Rubens Paiva fora morto. Segundo o repórter, nosso, ex-Presidente riu e falou pro senador Vitorino Freire: 

– Acidente de trabalho.   

  Rubens Paiva não foi o único "desaparecido". Há centenas de famílias na mesma situação: filhos que não sabem se são órfãos, mulheres que não sabem se são viúvas. Provavelmente, o homem que me ensinou a nadar está enterrado como indigente em algum cemitério do Rio. O que posso fazer? Justiça neste país é uma palavra sem muita importância. As pessoas de farda ainda são os donos do Brasil, e eles têm um código de ética para se protegerem mutuamente (como no caso do Rio centro). 

   Vou usar um velho chavão, mas é verdade que não é matando um corpo que se elimina um homem. Rubens Paiva está vivo em muitas pessoas. Um homem querido, respeitado. Um homem que não temeu nada. O contrário de quem o matou. Imagine as noites da pessoa que um dia colocou um senhor de quarenta anos e pai de cinco crianças num pau-de-arara, dando uma descarga elétrica naquele corpo...

  Chegará o dia de quem desapareceu com Rubens Paiva, assim como chegará o dia dos que desapareceram com vinte mil na Argentina, porque esses desaparecimentos têm o mesmo significado. O sadismo de alguns imbecis que apenas por vestirem fardas e usarem armas se acham no direito divino de tirar a vida de uma pessoa, pelo ideal egoísta de se manter no poder.

 MATARAM RUBENS PAIVA

 JESUS CRISTO 

CHE GUEVARA

 HERZOG

 SANTO DIAS 

20 MIL NA ARGENTINA 

30 MIL EM EL SALVADOR 

MATARAM E DECEPARAM VICTOR JARA 

 Mas nunca vão matar aquela esperança que a gente tem de um mundo melhor, que eu não sei direito como vai ser, mas tenho certeza de que gente tipo "o oficial loiro, de olhos azuis", tipo Brigadeiro Burnier e tipo Médici não vai ter .

  Finalmente veio a hora do rango. Primeiramente, uma sopa, muito mais consistente que a da UTI. Bom. Depois, inacreditável, arroz, carne, cebola e uma verdurinha que deveria ser chuchu. O prato dava para dois, mas comi em um segundo. Salada, sem tempero, mas era salada. E tinha até sobremesa, veja só que mordomia. Mamão, que é bom para o intestino. Pra descer a comida, um suquinho artificial, com a pretensão de ser de laranja, que tinha mais gosto de dióxido-laranjeico. Nem tudo é perfeito. Faltava o cafezinho, mas tudo bem. Veio a moça buscar a bandeja, e perguntei se não poderia repetir o prato. Claro que não podia, era uma dieta cuidadosamente receitada.  

   A noite vinha chegando, e com ela o pavor da insônia. Há quase um mês que vinha sofrendo comisso. Só que na UTI tinha outros caras estourados pra gente se distrair. Aqui só iria dormir eu, num colchão de ar, pois os colchões de água do hospital estavam todos ocupados. Ao meu lado ficava outra cama, para o acompanhante. O colchão de ar era mais gostoso, macio. Tinha um motorzinho, provavelmente um compressor, que ficava ligado deslocando o ar através do colchão, fazendo com que meu corpo ficasse em ligeira movimentação. Uma mistura de massagem com mudança de posição. 

 Minha mãe iria ser minha acompanhante naquela noite. Bom. Era a pessoa que me dava mais confiança, e eu já estava prevendo uma noite difícil. 

 Onze horas, medicamentos: remédio pra dormir, antibióticos, tranqüilizantes. Que dia emocionante hoje. Primeiro, um passeio de ambulância. Depois, outro hospital, novos enfermeiros, novos amigos. Médicos, quarto marrom-claro, sentar qualquer dia. São Paulo, eu adoro esta cidade, agito, multidão. Campinas era ótimo pra morar, mas tinha muita gente babaca e, principalmente, não tinha vida noturna, o que estraga qualquer província com pretensão de ser cidade. 

 Campineiro é muito idiota. Muitac ocotinha e pouco conteúdo. O que vale lá são os estudantes da Unicamp e da PUC, que são na maioriade fora. É a cidade que tem mais dedo-duro que já conheci. Tem uma polícia municipal que é mais nojenta que a polícia que nós conhecemos. Andam pra cima e pra baixo, num fusquinha creme, pondo sossego na decadente aristocracia campineira. Precisava ver como grilava o fato de morarmos em república mista.   

  – Mas como? Homem e mulher juntos?

 E não era só velho que tinha preconceito. Tinha muito garotão que perguntava: 

– Então, você come todas elas?

 É, imbecil, todinhas, uma por dia. E, se não der, a gente corta os seios da mina com gilete pra fazer ensopado.

 Dormir, eu tenho que dormir .   

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