Mundo totalmente novo

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 Por incrível que pareça, estava ficando com saudades da UTI, das minhas enfermeirazinhas. Aqui estava tudo meio esquisito.

 Minha cama não estava arrumada, não tinha colchão de água. Deixaram-me jogado numa maca, sozinho. Comecei a ficar inseguro, num lugar que não conhecia, com pessoas que não conhecia, num corpo que não conhecia. A porta estava aberta e o eco que fazia no corredor dava a impressão que tinha uma verdadeira multidão. Chamei por alguém e veio um enfermeiro meio bicha. Carinhoso, ficou pegando no meu braço, explicando a dificuldade de arrumar um leito pra mim, pois o colchão d'água era muito pesado (em torno de 150 quilos), e eu precisaria de uma cama mais forte. Realmente.

 Eu, pesando uns 65 quilos, mais o colchão d'água dava uma gorda enorme de uns 215 quilos. Não precisaria só de uma cama, mas de uma verdadeira estrutura metálica, pra agüentar todo este peso.Finalmente conheci meus novos médicos. Dr. Luís era clínico geral, responsável pela minha saúde no hospital.

Depois, veio um neurologista que nunca mais vi na vida. Fez os testes da agulhinha:

- Sente aqui?

- Sim.

- E aqui?

- Não.

Fez umas anotações, me olhou preocupadamente e foi embora.

Veio um enfermeiro, tirou o caninho amarelo que continha soro.

- Agora você não precisa mais disso, você vai-se alimentar com comida.

 Já estava gostando desse hospital. Homens de coragem. Estavam-me tratando mais naturalmente, sem caninhos (exceto a sonda no pinto), comida pura. Altos progressos.

 Depois de um tempo, entrou no quarto o tão falado Mangueira. Junto dele estavam uns assistentes, meus amigos e a família. Todos animados para ouvir as palavras do mestre. Aparentava uns cinqüenta anos. Bem grande, uma mistura de gordo e forte. Olhava com uma cara indecifrável. Não sabia se estava gostando ou não, mas isso não eliminava a expressão forte. Era um homem tranqüilo,transmitia muita segurança.

 Examinou meu pescoço, tirou umas medidas, confabulou com um dos assistentes, deu um tapinha no meu ombro.

- É isso aí, rapaz.

  E saiu, abraçado na minha mãe. Uma palavra, não disse uma palavra. Achei estranho. Afinal, eu era o doente. Tinha uma necessidade incrível de saber , mesmo em termos médicos, quais eram as minhas chances. A Nana me deu um beijinho e ficamos imaginando o que ele tinha achado do meu estado clínico. Analisamos cada sorriso, cada gesto, o tapinha no ombro. Mas não adiantava. Nada, nada. Mistério. Que saco!

 Mais tarde, veio minha mãe trazer as novas. O Mangueira estava bolando um colete de ferro, pra fixar o meu pescoço. Assim eu não precisaria fazer tração, e logo, logo poderia sentar .

- Sério?

- É, ele falou que o mais importante pra você agora é sentar .

  "Joíssima. Falei que esse cara era corajoso. Eu gosto de gente assim. Nada de tremer com o desconhecido: ir à luta, agüentando as conseqüências, sejam quais forem. Ir de cabeça. (De cabeça? É, mas tomando cuidado pra não quebrar a quinta cervical.) Que maravilha, vou sentar, ver as pessoas na horizontal, ver as paredes, as janelas. Ver, enfim."

Estava cansado de pensar .

  Nunca em toda a minha vida meu pai fizera tanta falta. Não sei ao certo o que é ter um pai, foi pouco o tempo que pude dizer "papai". Mas de uma coisa tenho certeza: ele se orgulhava de mim. Ficou preocupado que seu filho, convivendo com quatro irmãs, acabasse se afeminando. Então, logo cedo, me pôs num colégio público, em São Paulo.

 Mais tarde, percebeu que não precisava, já que eu era um brigãozinho e tinha uma voz hiper grossa. Quando mudamos pro Rio, me deixou estudar num colégio burguês, com os filhos dos seus amigos.No boletim vinham as minhas barbaridades, mas em casa não tinha bronca. Ele se orgulhava de seu filho macho. As notas estavam ficando ruins, principalmente em Português.Minha mãe dava verdadeiros castigos, obrigando-me a estudar com ela.

  Meu pai me deu uma garrafa de uísque para rifar, e, com a grana, comprar um jogo de camisas novas pro Vasquinho (eu, como presidente, tinha que fazer uma média com os eleitores}. O número sorteado foi o do vizinho da frente, e ele fez questão de ir com todo o time entregar o prêmio. Depois, nos convidou para irmos ao Maracanã ver um jogo do Mengão (apesar do nome do time, éramos todos flamenguistas}. Achei incrível.

  Meu pai nunca tinha sido de futebol, mas naquele dia queria participar da minha vida.

  Ele guiando, eu ao lado segurando uma bandeira pela janela, o resto do time atrás. Na entrada do túnel Rebouças, um trombadinha se aproveitou da lentidão do trânsito e passou a mão na bandeira.

- Pára o carro, pára - eu pedia desesperado.

  Ele parou, descemos atrás do canalha. Voou pedra, pau e palavrão até que o bandidinho deixo um eu pano rubro-negro no chão. Voltamos pro carro e dei com aquela figura de bigodes, meio assustado emeio surpreso, ao ver seu filho se defendendo sozinho. No estádio - o Rubens Paiva e seis moleques sentados na arquibancada - gritamos "Meengo!", xingamos o juiz, atiramos bolinha de papel.Gol do Fio: ÊÊÊÊÊÊÊÊ! Ao meu lado, um senhor pulando e agitando minha bandeira com a mesma alegria que meus cinco amiguinhos. Voltando pra casa, depois de comentar cada lance com os amigos, disse que enriquecera seu vocabulário de palavrões com seu filho de dez anos.


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