UTI( Parte 2)

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Marcelo

Eu nunca tinha tido contato com a morte na minha vida até os doze anos(12). De repente, morreu meu pai, o pai do Ricardo(meu tio), uma prima, outro tio,outro tio,meu avô. Tudo isso em dois anos. Foi um choque,pois, encarando-me como uma criança, nunca me contavam direito a verdade. As pessoas não entendem o que é a morte, porque a morte não é para ser entendida,é para ser apenas a morte. A morte é para ser vivida, e minha família não queria que as crianças convivesse com ela.

Eu devia estar sendo muito bem dopado, pois apagava com um facilidade incrível, e, quando acordava, não conseguia pensar direito:
Hospital, esses caninhos, esse teto branco, por que não mexia nada? Ah é, era a tal de medula.

"É agora minha maior  preocupação é sair daqui, estudar pra dois exames que ainda faltam na faculdade, fazer a matrícula do próximo semestre, pagar o aluguel e arrumar grama pra passar o carnaval em Olinda, na casa da Nanda," Quando entrou no quarto minha mãe de novo, com um baixinho meio careca, todo de branco:

-- Esse foi o médico que te operou, Dr. Alex.

Me deu um sorriso, foi até o pé da cama, examinou as minhas fichas, voltou, examinou o meu pescoço.

--Doutor, eu queria te fazer umas perguntas.-  eu disse.

-- Lógico, eu vou te explicar  tudo direitinho.

--  Vou ter que ficar ainda muito tempo aqui? Tenho umas coisas importantes pra fazer.

--Agora não posso te responder. Você foi operado e está em estado de observação.

Teto branco. O branco para paz. Limpeza. Repouso. Branco que nem Vazio. Tédio. Solidão. Era difícil o tempo passar e não tinha o filme do Marlon  Brando com a Maria Schneider na frente, ou mesmo um com Chico Cuoco e Regina " Duarte pra se distrair. Não dava pra ler um jornal naquela posição horizontal sem levantar a cabeça. Jogar dominó, pôquer, botão. Não dava pra fazer nada a não ser pensar e olhar o teto branco, com três lustres de lâmpadas de mercúrio, oito parafusos em cada e uma rachadura no teto que lembrava o perfil de um cachorro.

Cachorro. Isso me fez lembrar a minha trágica vida com animais: cachorros atropelados e gatos fugitivos. Nunca me esqueço do Sig. Eu tava passeando com ele pela praia do Leblon, quando de repente soltei a coleira, e ele, numa demonstração do quando gostava de mim, se picou. Saiu correndo feito louco, e eu atrás:

--Volta aqui, seu desgraçado.

Ele atravessou a rua e uma decavê passou por cima. Fiquei chocado, arrependidíssimo, com o maior sentimento de culpa. Meu pai, percebendo meu sofrimento, me deu outro: Khe San, nome de uma província bombardeada pelos americanos no Vietnã ( meu pai tinha um senso de humor político incrível). Passeando de carro por Copacabana, eu, num instante, abri a janela pra jogar um papel fora e ele pulou, saiu correndo, felicíssimo, latindo.
Por último, veio o mais incrível deles: Biro-Biro, um gato vira-lata, preto e branco. Esse foi na minha fase adulta, já morando sozinho em Campinas. Peguei para criar desde pequenininho, numa época que eu passava muito tempo sozinho. Resolvi que tinha que educa-lo liberalmente, sem repressões sexuais etc. Quando eu estava escrevendo, ele subia na mesa, caminhava pelo meu braço até o ombro e pulava na minha cabeça, para me ver escrever. Então, eu o colocava na mesa e ficava acariciando sua costela. Todo dia que eu estava escrevendo, ele vinha  como quem quer ser acariciado. Já estava virando mania. Eu não queria, mas ele pegava a ponta da caneta com a boca e não me deixava escrever. Eu tirava a caneta, ficava lendo, mas ele sentava em cima do papel e só saía se eu o alisasse. Fiquei preocupado. " Esse gato tá virando um sexomaníaco." Resolvi reprimi. Joguei o Biro-Biro numa almofada como quem diz:

-- Vá  procurar suas gatas, canalha.

Eu me dava tão bem com ele que até nossos gostos musicais eram parecidos. Quando eu punha uma música que gostava na vitrola, ele vinha correndo, pulava em cima do disco e ficava rodando, felicíssimo. Eu achava um barato, só que isso me custou duas agulhas e uma coleção de discos arranhados.

-- Hora do almoço - disse Elma.

Almoço? Você deve imaginar uma mesa no meio de cinco macas com pessoas absolutamente estouradas comendo frango e chupando ossinhos.

--Isso é o meu braço.

--Desculpe, é que parecia uma coxinha de galinha.

Mas não. O almoço era um prato de sopa na mão da Elma. Enquanto me dava na boca, a gordinha falava:

-- Você é um cara bem conhecido. Tem um monte de gente lá embaixo querendo te ver.

-- Ah é? É por que eles não entram?

-- Não pode. Aqui na UTI não devem entrar pessoas de fora, pode ser perigoso. Vocês estão em estado de observação, absoluto repouso. Só tua mãe e...

-- Minhas irmãs ?

Acabando o almoço, ela me trouxe um pouco D'água  com um canudinho de plástico.

-- Esse amarelo é soro. Tem glicose e alguns medicamentos. O vermelho é...

-- Sangue -eu disse pra ela.

-- Isso. É por causa da operação, mas hoje mesmo você tira ele. Aqui no pênis é uma..

--Pênis ?

-- Ah, não dá pra ver, mas tem uma sonda.

-- Pra quê?

-- Pra você urinar, burro.

Mais uma vez apaguei. Aliás, os três primeiros dias foram na realidade alguns minutos de acordado e o resto dormindo. A vida se resumia em alguns flashes de sopinhas e enfermeiras tirando a pressão. Dr.Alex, que vinha me ver todas as manhãs, não falava nada além de um :

-- Está melhor?

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