Meu pai , o mais foda de todos.

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  No começo dos anos 70, ele viajava menos e estava bem caseiro, decididamente curtindo os filhos e a ,r vida em família ( um pouco também por não ter o que fazer politicamente). A maioria dos seus amigos estava no exílio, mas nos fins de semana ainda dava pra reunir a turma num jogo de pôquer. Antes, porém, a preliminar era comigo. Montava a mesa de botão na sala, colocava dois times e lá estávamos, eu e o Gasparian, jogando. Em volta, toda a nata do Partido Socialista Brasileiro, claro que torcendo pro mais fraco: o Gaspa. No meio do jogo, o Rify deu um pênalti contra mim (era o juiz, mas não entendia nada de botão). Pronto, armei o maior escarcéu, soltei todos os palavrões possíveis, briguei com todo o mundo. Tirei o time do campo sob vaias da torcida e fui pro quarto, jurando nunca mais falar com os caras.   

  Já vivíamos o espírito carioca e, domingo, íamos todos pra praia. Como minha casa ficava de frente pro Leblon, todos trocavam de roupa lá: um verdadeiro Estado Maior, a cúpula do Vasquinho,jornalistas e o que sobrou da cúpula do Governo Jango: Raul Rify, Valdir Pires, Boca viúva Cunha, Fernando Gasparian, Flávio Rangel, Hélio Fernandes, José Aparecido. 

  Era sol, era praia. Biquínis, maiôs, ricos e pobres, pretos e brancos. A maior qualidade do Rio de Janeiro é que uma vez por semana a cidade fica absolutamente democrática. Tudo se mistura: bate- papo, futebol, vôlei (o Chico Buarque era freqüentador da nossa rede), mulheres seminuas, cachorros enchendo o saco, bolinhas de frescobol perdidas. Mesmo com ditadura, o carioca sabe usar o que tem de melhor: a praia.  

  De repente, meu pai se levantava e íamos pra água. Ultrapassávamos a rebentação, até não mais distinguir uma pessoa de um cachorro. Longe de todos, bem lá no fundo, boiávamos. Eu não conseguia, mas não me cansava. Me sentia tão seguro que nem me importava com aquele mundão d'água. Descansados, nadávamos. Cruzávamos o canal do Jardim de Alá e, quase no Country Club, já em Ipanema, a gente parava. 

Íamos nos aproximando da costa até pegarmos um jacaré. Eu me agarrava nas costas dele como se estivesse numa prancha, e ele, com um bruta fôlego, deixava a onda nos levar até o raso. Era a glória eu ali, sendo levado nas costas do meu pai, preocupado em não machucá-lo com minhas mãos, vencendo todas as barreiras da natureza revolta, deslizando velozmente. Eu e meu pai,juntos desafiando a vida, sabendo que unidos venceríamos, em paz um com o outro, respeitando a vontade e os desejos um do outro. 

 Enquanto alguns pais levavam seus filhos pra jogar tênis, o Rubens Paiva levava o Marcelo pra Pavuna, um bairro operário da Zona Norte, onde ele estava construindo umas casas populares. Eu adorava, ajudava a fazer cimento, levantar muro, passar argamassa nas paredes. Aprendi a comer feijão com farinha na marmita, a beber café mineiro no copo, usar capacete de obra e carregar martelo na cintura.  

  Todo primeiro de maio os candangos faziam festa nos canteiros. E como era meu aniversário, sempre tinha um bolo pra mim. Ganhava os presentes mais incríveis, desde um martelo mirim até um chaveiro de fita métrica. Às vezes, eu ia pro escritório dele no centro da cidade e ficava brincando de engenheiro. Sentava naquelas pranchas enormes e desenhava pontes. Quando mostrava, meu pai sempre dava uns palpites e corrigia. Acho que foi assim que nasceu a vontade de estudar engenharia.

 Meu pai me ensinou a andar a cavalo. 

Meu pai me ensinou a nadar. 

Me incentivou a ser moleque de rua.   

 Me ensinou a guiar avião ( tinha um na firma dele e, depois de decolar, eu pegava no manche eia mirando até São Paulo). 

 Mas meu pai não pôde me ensinar mais...

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