Noite complicada

210 5 3
                                    


  Não estava conseguindo dormir. Esse compressor fazia um barulho danado. Não só o motor dele, como também o ar que saía e entrava no colchão, parecendo um velho respirando asmaticamente. Pra piorar, tinha uma luzinha vermelha que estava me deixando louco. Mantinha meu olho aberto, atento.Minha mãe também não conseguia dormir. Me concentrei. Fiz contas de matemática na cabeça. Cantei uma música sem abrir a boca. Não dava. 

  Chamei minha mãe. Além de tudo, minha barriga estava doendo. Igualzinha àquela dor de nervoso que dava na UTI. Tocamos a campainha, velo o enfermeiro de plantão.

  – Outro sedativo? Mas você tomou um há uma hora.

 Expliquei meu nervosismo. Afinal, era o primeiro dia depois de trinta na UTI. Ele fez uma cara contrariada, mas gentilmente me deu outro sedativo. Minha mãe ficou um tempo mexendo na minha barriga. Apagou a luz. Tentei dormir.

 Tentei, tentei, como tentei. O sonho da minha vida era ter um botãozinho na barriga pra, quando quisesse dormir, só apertar e pronto.

  Deve ser genético. Meu avô Paiva tinha insônias homéricas. Até achavam que ele era um fantasma. Ficava circulando pela fazenda com dois cachorrões, conversando com eles.O chato era que, além da insônia, tinha essa luzinha, esse motorzinho, essa dor de barriga que aumentava, aumentava. Já estava gemendo de dor. Minha mãe pôs o desgraçado do compressor debaixo da cama, com um cobertor em cima pra abafar o barulho. Mas já não era isto o meu desespero, e sim o fato de não dormir. Não estava preocupado com a tragédia, com o meu. futuro. Era dormir , que eu queria, e encanei tanto nisso que a barriga doía pela possibilidade de passar aquela noite inteira acordado, olhando para o teto, sem fazer nada. 

  Pedi outro remédio. 

– Pelo amor de deus!

  Mas minha mãe, com todo o espírito racional dela, falava: – Fique tranqüilo. É só fechar os olhos que você dorme.   

  Bosta nenhuma. Perdi a minha aliada. Comecei a gritar. Primeiro, para descarregar o nervosismo. Depois era pra chamar a atenção mesmo. Não poderiam me deixar gritando, pois isso atrapalharia outros pacientes. Teriam que dar um jeito. Veio o médico de plantão, e eu reclamei de dor. Tava doendo muito, insuportável. 

  Finalmente deram-me uma injeção fortíssima de aspirina.

  Que delícia. Era de efeito imediato. Logo minha boca estava adormecendo, a bochecha formigando. Uma moleza ótima dominava meu corpo. Finalmente. Paz. Estava abandonando essa loucura toda. Ia dormir por alguns instantes, mas o suficiente para recarregar a bateria, já que outro dia viria pra me pirar . Paz, como é lindo o outro lado da vida. Sonhar, respiração lenta. Sonhar aquilo que desejo sonhar. Uma bela menina que me mostra os seios num elevador. A garçonete me convidando pra conhecer o sótão. 

  Se morrer é isso, então é a coisa que mais desejo. Passear de elevador até o infinito com um parde seios bonitos.

  – O café está servido... 

  Surpreendentemente, logo de manhãzinha, fomos acordados pela moça do café, e que café. Pão,presunto, queijo, torradas, pacotinho de manteiga. Num bule, leite; noutro, café. Mamão e o suquinho dedióxido-laranjucleico. Formidável, parecia hotel. Comi tudo e ainda pedi mais. Incrível a fome que estava, não era normal. Podia ser que o jejum forçado da UTI estivesse me dando fome, mas creio que era um pouco de carência também. Deglutir, massagear a garganta, entupir o estômago. Era primordial que me cansasse, fazia o tempo passar mais depressa.

  Logo após o café, vinha o banho. O ritual era o mesmo da UTI, só que mais sofisticado. Vieram dois caras bem alegres. Um, era o Chico. O outro nem precisou dizer o nome, que já comecei a chamá-Iode Santista. E que ele tava com uma bruta camisa dos "Tubarões da Baixada". Torcida organizada desse time medíocre (não sei se já falei, mas sou corintiano e flamenguista roxo). 

    Um me segurava e o outro me lavava. Fiquei de lado um pouco e pude examinar melhor o quarto. Tinha uma janela verde, bem na minha cabeça, que dava para um bosque lindíssimo. O hospital era no Pacaembu, bairro hiperarborizado de São Paulo. Havia uma espécie de criado-mudo entre as duas camas. Nada mais, exceto uma poltrona grande de madeira. O quarto não era tão fino como o tratamento, pois eu estava na ala do INPS. Um silêncio delicioso. Trânsito não havia. Só passarinhos cantando em homenagem àquele sol de verão.   

 Os caras já tinham ouvido falar das minhas irmãs e das amiguinhas, em especial da Nana, a linda pernambucaninha oxênti-bichinha de olhos verdes. E logo já se interessavam: 

– Mas aquela morena, de cabelo liso?   

– É a Veroca, a irmã mais velha. Só que já tem um mineiro na vida dela.

Eles riam ironicamente. E perguntavam da Big: 

– Essa tá sem namorado.

   Eu já estava acostumado com este inquérito. É bom ter irmãs bonitas, e eu tenho quatro, modéstia à parte. O que você tem de amigos facilita muito.

 – E aquela loira, pernambucana ?

 – A Nana? 

– Isso.  Ela é sua namorada?

  Nunca tinha pensado nisso. Não sabia responder . Eu nunca tinha pedido a Nana em namoro. Eu sabia que ela estava gostando de mim. Uma noite, transamos. Mas não era minha namorada, nem também uma amiga. Eu a estava amando loucamente naqueles hospitais. Adorava quando ela ficava, e era quem ficava mais tempo comigo. Estava sendo a pessoa mais importante na minha vida. Achava-alinda, beijava-a na boca. Amava-a, mas não era minha namorada. Dá pra entender?  

  Fiquei com ciúmes quando eles riram da Nana. "Qual é, ô meu? Não põe a mãe em brasa, que leva fogo!" Mas homem é assim mesmo. Nem todos gostam de futebol, ou de política. Mas falá de muié, uau! 

  Um dia ainda vou perguntar pra Nana se a gente namorou, mas acho que ela também não vai saber dizer .

Feliz Ano Velho Onde histórias criam vida. Descubra agora