Feliz ano novo

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Paciente novo. Meu xará, Marcelo. Caiu de moto e quebrou a perna: caso simples. Um desses boyzinhos  típicos de cidade provinciana.

-- Pô, e minha moto, onde é que ela tá?

O cara era um verdadeiro chato. Ele ia ser operado e não podia comer nem beber nada. Como estava com sede, tentava fazer a cabeça da Ilma pra lhe arrumar um pouco d'água. Mas ela, com um espírito de profissional responsável, não lhe dava nada. Não é que o cara começou a berrar?

-- Eu quero água.

--Calma, tenha paciência. Já, já você ser operado e poderá ir para casa. ( Essas enfermeiras têm que aturar cada cara!)

-- Eu quero água.

E chorava feito um bebê. Garotão mimado. O cara não parava, e eu não suportava mais. Uma tremenda falta de respeito com os quase mortos, simplesmente por um copinho de água. Quando ele começou a xingar a belezinha da Ilma, eu me estourei:

-- Ô, meu chapa, você não tá vendo que tem gente morrendo aqui?

-- É, mas eu quero água, tô com sede.

-- Espere um pouquinho, respeite os outros, senão você pode matar alguém.

À princípio deu certo, mas depôs começou de novo. Não aguentei. E como ele não sabia do meu estado físico, gritei:

-- Olha aqui, bebê chorão, se você não calar a boca, eu me levanto daqui e te arrebento.

-- É que eu queria um pouco de água.

-- Fica quieto.

Ele ficou resmungando baixinho, mas calou a boca. Quem gostou foi um bêbado na minha frente que, enquanto eu falava, me aplaudia. Senti-me como um galo defendendo seu território e suas fêmeas.

Ultimo dia do ano. Grande coisa. Única diferença é que não haveria fisioterapia. Mas, de resto,era um dia qualquer. Passagem de ano é bom pra se fazer um balaço do que passou e prometer a si mesmo que corrigirá os defeitos.

-- Este ano, paro de fumar.
--Este ano, vou estudar.
--Este ano, arrumo um emprego.

Claro que nada disso dá certo, mas a tentativa é que vale. Na minha situação, não adiantava nada. Que poderia eu fazer de promessas, se nem ao menos, sabia se ia continuar vivo ou não? E também foi o tipo de passagem de ano para pior. Preferiria que o tempo voltasse atrás, até o exato momento em que eu mergulhara naquele lago. Quantas vezes desejei isso. Uma coisa de nada transformou minha num pesadelo.
Minha mãe era quem ficava comigo de noite. Ela voltava de São Paulo e dava janta pra mim. Esperava até eu dormir, dava um tempo e ia embora. Mas essa noite, pouco antes da meia-noite, acordei com fogos e gritaria na rua. Era Ano-Novo. E mudanças de década: 1980. Não haveria champanhe, serpentinas ou abraços. Eu estava só.

--Feliz ano novo, Marcelo.

-- Pra você também, Marcelo.

Admirava a alegria das pessoas na rua, uma alegria da qual não fazia parte. Estava triste e só.

Adeus Ano Velho, Feliz Ano-Novo

Não tinha o mínimo sentido. As lágrimas rolaram, chorei sozinho, ninguém poderia imaginar o que eu estava passando. Nada fazia sentido. Todos sofriam comigo, me davam força, me ajudavam, mas era eu que estava ali deitado, e era eu que estava desejando minha própria morte. Mas nem disto eu era capaz, não havia meio de largar aquela situação. Tinha que sofrer, tinha que estar só, tão só, que até meu corpo me abandonará. Comigo só estavam um par de olhos, nariz, ouvindo e boca.

Feliz Ano Velho, adeus Ano-Novo

Foi o que eu prometi a mim mesmo. " Se eu não voltar a andar, darei um jeito qualquer pra me matar." Era bom pensar assim. Eu não tinha medo de morrer.Era muito mais fácil a morte que a agonia daquela situação.

--Parabéns, Marcelo. Foram vinte anos bem vividos. Deixará muitas saudades, alguns bons amigos, umas fãs. Fique tranquilo, o Cassy sabe tocar algumas de suas músicas. Um dia, quando ele gravar um disco, irão saber que você existiu. Mas também, se não souberem, tanto faz. De que vale a eternidade?
Um orgasmo dura poucos segundos. A vida dura poucos segundos. A história se fará com ou sem a sua presença. A morte é apenas um grande sonho sem despertador para interromper. Não sentirá dor, medo, solidão. Não sentirá nada, o que é ótimo. O sol continuará nascendo. A Terra se fertilizará com o seu corpo. Suas fotografias amarelarão nos álbuns de família.
Um dia alguém perguntará:

-- Quem é esse cara da fotografia?
-- Ninguém que interesse.

Meu RG irá para outra pessoa. Meu violão se desintegrará em algum depósito de velharias. Meu gravador será roubado por um trombadinha. As cuecas, minhas irmãs poderão guardar para seus filhos, mas aconselho jogar fora, pois até lá já estarão fora de moda...

Tchau, mãe. Se cuida, tá? Thais e Ana, vocês são belas mulheres. Cassy, continue tocando, que você chega lá. Virgínia, pena você não ter me amado como eu te amei. Veroca, Eliana, Nalu e Bing, juízo, hein? Gorda, você é um cara incrível. Ricardo, meu irmão, o cara que mais me conhece. Nanda querida, não fique com raiva de mim, eu tentei gostar de você, mas não dava, eu tava muito chato. Marcinha gracinha, você é uma fofa. Fabião, vá à luta, meu chapa. Mariùsa mãezinha, valeu a força que você me deu.
Gureti, vê se fica menos briguenta. Maurão, seu viado, não beba tanto. Bundão querido, cuida bem delas, tá? Zequinha, seu louco, largue um pouco os livros, bata mais punheta. Celso,lindo, você é duca. Nelson e Olaf, cuidem bem da chácara. Betão, Rubão, Max, lembrem de minhas posições políticas. Laurinha fofa, emagreça um pouquinho. Milu, você tá me devendo uma transar, hein? Tchau, pessoal, feliz Ano-Novo pra vocês.
Continuei chorando.

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