Dia Seguinte

116 3 0
                                    


 No dia seguinte, a mesma multidão que viera antes, acrescida de alguns elementos. Uma loucura. Eu gostava, mas estava me fazendo mal. Havia me dado uma febre que, segundo o clínico geral, era cansaço. Fizemos um acordo: durante os próximos dois dias, seria melhor não receber visitas. Realmente, muita gente, dormindo mal, emocionado, não dava pro meu corpo ficar numa boa. Só ficaram comigo as pessoas de sempre. Foi bom. Fiquei a tarde inteira vendo televisão. Eu precisava me acostumar. 

  Já estava melhorando, sabia quem era quem, distinguia as vozes, reconhecia aquele barulho estridente que saía de dentro do aparelho. A programação é que não ajudava muito. Estava passando Flipper, um golfinho babaca, amigo de uma típica e feliz família americana. Mudei de canal. Passava um desenho hiperimbecil que costumava ver na minha infância. Um tal de Speed Racer, corredor bonitinho que tinha um carro, o Mach 5, que voava, andava em duas rodas, uma tremenda besteira. Mudei. 

  Passava o programa Clarice Amaral, uma mulher simpática, maquiada até o tornozelo. Por coincidência, lembrei-me que estivera nesse programa havia uns quatro, cinco anos, com um grupo de teatro infantil. Fazíamos uma espécie de promoção da peça. Fomos entrevistados e, depois, cinicamente, ela perguntou:

— Por que vocês não fazem uma demonstração, de improviso?

Ridícula, nós já estávamos de roupa e tudo, e ela falou aquilo com um olhar de quem está sugerindo uma coisa nova. Provavelmente imaginando que os telespectadores pensariam que o programa era cheio de surpresas. Fizemos uma cena em que eu e o Romão entrávamos no palco e perguntávamos pra Julinha se ela estava bem. A besta esqueceu o texto ali, em frente às câmeras. Percebendo a cara de coitada dela, assoprei bem baixinho o texto. Não é que os caras tinham aumentado o volume do microfone e tinha saído tudo? Bosta.

  Mudei de canal. Não acreditei: aula de ginástica pela televisão. Uma velha, com um corpo horroroso, ao som duma valsa de Viena, comandando os exercícios. Deprimente. Ainda mais pra mim, que só poderia fazer um exercício: levantar o braço.

  Às sete, passou uma novelinha boboca. Eram os últimos capítulos, e logo entraria outra. Bom, assim acompanharia desde o início. Depois: "Dez para as oito." Era o Jornal Nacional. A União Soviética invadira o Afeganistão e os Estados Unidos afirmavam que iriam revidar. Estudantes iranianos invadiram a embaixada dos Estados Unidos. Meu deus, mas que loucura. Eu já tinha lido isso no jornal, mas o tom trágico do Cid Moreira me deixou apavorado. Bateu uma insegurança, pois, caso houvesse uma guerra, eu não teria forças pra fugir, me esconder. Fiquei puto. As potências ficam brincando com a humanidade que nem uma disputinha de gato e rato por um teco de queijo.

  As cenas de canhões, gente botando fogo em madeiras, o bobo do Carter, Brejnev. Pronto: era o fim. Tudo estava perdido. Acabem logo, apertem o botão. Mas não era por isso que estava tão emocionado. Já tinha visto muitos "jornais nacionais". Mas agora era diferente. Não dava pra entender por que tanta tragédia.

  Coisa inútil, esses homens perdendo um tempo precioso pra ficar brigando entre si. Você deve estar pensando — mas que carinha mais bobo, infantil, todo pacifista, ingênuo. O povo do Afeganistão tem o direito de se levantar contra a tirania russa. Ou então, se você é do PC, deve estar me achando um agente do jogo capitalista que não entende a necessidade de uma teoria chamada comunismo ter que ser aprendida pelos muçulmanos do Afeganistão a porrada. Ora, eu estava absolutamente maluco naquela cama de hospital.

  Era inconcebível que as pessoas se preocupassem em se matar, guerrear. A violência do que havia acontecido comigo já era o suficiente. Se "quem procura, acha", por que eu, que nunca bati em ninguém? Se "quem fere com ferro, com ferro será ferido", oras! Ainda querem que eu acredite em justiça. Por que esses merdas dos generais, americanos, russos etc. não quebram a quinta cervical?

Que o mundo se foda todo, porque merece. Mas eu, NÃO!

Feliz Ano Velho Onde histórias criam vida. Descubra agora