P/(DOIS)

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Veroca, novamente minha acompanhante. Fizemos os relaxamentos, algodão úmido no olho,visualizar a respiração. Calma, muita paciência. Pensar no futuro, daqui a um tempo estarei longe, amando uma mulher numa praia, sentindo o ventinho de um CMTC, comendo churros na praça da Sé. Vestido de seda azul, penas de pavão, cheiro de patchuli, depilação, sol, pele,luz, olhos, sim, né. É. 

— Bom dia!

O quê? Como? Ué, não é possível, dormi. Dormi no meio do relaxamento. Sem injeções, sem sedativos. Nada de dores na barriga, gritos, gemeção. Que maravilha, dormi. Dominei minha cabeça. Meus olhos não viram nada. A vida parou por instantes. Epa, pera aí. Tive até um sonho. Isso mesmo. Sonhei que estava numa cela de cadeia ouvindo um radinho. Tinha na minha frente um pôster da Lídia Brondi. Com o som da música, comecei a dançar, e ela estava nos meus braços. Estava com uma perna entre as minhas e sentia perfeitamente o corpo dela, todo colado no meu. Os seios, as coxas. Não lembro de mais nada. Mas foi bom sentir de novo um corpo de mulher. Essa menina tem um rosto lindo que lembra uma namorada de infância. 

Uma mistura de inocência com personalidade. É uma menina inteligente. Sempre fui vidrado nela. Que bom, Lídia Brondi, você se lembrou de mim. No próximo sonho, levarei você pruma cachoeira linda que existe perto de Campinas (ela é de Campinas). Minha musa, minha paixão, dedico esta noite de sono a você, e obrigado por ter dormido comigo.

Estava em êxtase. Contei a grande novidade a todos: dormi. Oito horas de sono ininterruptas. Ronquei, sonhei, falei sozinho, enfim, apaguei esse desgraçado tédio por algumas horas. Não tinha dúvidas de que este hospital tinha dado um grande salto de qualidade na minha vida. Comer comida, livre dos caninhos. Ler jornal. Ver televisão e, o mais sensacional, dormir. Senti até o corpo de uma garota. Não conseguia esconder meu entusiasmo na hora do banho. 

O Chico e o Santista não entendiam como alguém podia ter ficado tão feliz simplesmente por dormir, mas respeitavam minha alegria. Até então, eu só conseguia dormir por poucas horas. Sempre acordava no meio da noite. Chegaram as ajudantes de praxe, Nana, Big e Gorda. Contei-lhes a nova "SOPLESA". Tínhamos combinado que "SOPLESA" eram as melhoras físicas, os novos movimentos.

Mudamos os esquemas. As visitas não ficariam mais no quarto, até baixar a febre. Só poderiam me ver de duas em duas, e por pouco tempo. Prometi a mim mesmo que não veria televisão à tarde, para ler. O que mais me agradava na mudança era que, como todos estavam ocupados, minha avó se encarregaria de passar as tardes comigo. Achei ótimo, eu me dava bem pacas com ela. Além do mais, era uma grande contadora de histórias. Filha de um anarquista italiano, famoso por provocar a polícia (dizem que tem até um chapéu dele num museu em Módena, Bolonha, que ele deixou cair numa fuga), ela veio pro Brasil aos 4 anos, junto com os pais, fugindo das autoridades. Foram trabalhar com cultura de algodão no interior paulista. Ganharam um certo dinheiro e vieram pra São Paulo, morar ali no Brás, onde conheceu meu avô, também italiano.

ECCO!

Tenho um tremendo orgulho de ser neto de italianos, tutti gente buona, principalmente de anarquistas, os grandes revolucionários do começo do século. Uma ideologia fascinante que vou estudar melhor, neste período de... sei lá, período cabeçal (só a cabeça funcionando). Depois do jornal, passei pro Gabeira. Na UTI, onde ditavam este livro pra mim, não tinha entendido direito, portanto comecei a ler tudo de novo. Minha avó virava as páginas. Muito melhor ler do que ouvir ditado. As palavras, quando escritas, ganham sentimentos, mais verdade. Aquilo estava ali e não poderia ser apagado, enquanto a memória apaga facilmente. Veio um enfermeiro dizer que já estava chegando gente. Ele mandara, como o combinado, esperar no terraço.

Não estava a fim de visitas, principalmente agora que o Gabeira acabava de sequestrar um cônsul. Mas era um pessoal que estava de viagem para Recife. Tremi nas bases, devia ser a Virgínia e o Olaf. Olaf é um dos meus melhores amigos de Campinas. Um motoqueiro que não tinha o menor ciúme quando eu andava na moto dele. Sabia que eu curtia aquela moto e que andava bem. Morava na chácara, em Barão Geraldo, onde eu tava louco pra morar. Ficava horas tentando ensinar violão pra ele, mas não aprendia. Em compensação, tocava duas músicas dos Rolling Stones como ninguém. A Virgínia — ah, essa não tem palavras pra descrever...

Virgínia, morena Virgínia. Pernambucana que, um dia, trocou o sossego do lar pra vir morar em Campinas e acabar o curso de Antropologia. Linda. Pele morena, cabelo liso. Olhos caídos, pretos. Sotaque pernambucano forte. Abre bem a boca pra falar. Veio morar na minha rua, junto com a irmã e o Mateus.

Foi paixão à primeira vista, mas diziam que ela tinha um namorado pianista em Recife. Meu instinto machista respeitou o colega homem. Fiquei apaixonado a distância. Tempos depois, brigou com o namorado. Tchan-tchan-tchan-tchan. Homens de Campinas, preparem-se para um novo ataque. Novilha solta no pasto. Montem seus cavalos e avante! (Tenho nojo do meu machismo.) Na lista: Maurão, que morava comigo, Celso e eu. Minha cotação era a mais baixa, e por cagada minha. É que, pouco tempo antes, eu estava namorando a Silvinha e, ao mesmo tempo, transava às escondidas com Cristina. Acabei ficando indeciso e briguei com as duas, hipersacanamente. Aliás, sou um verdadeiro imbecil com as mulheres. Quando estou"afins" e ela não está, fico mal. 

Quando não estou "afins" e ela está, faço verdadeiras sacanagens. Com a Nana foi assim. É uma fraqueza minha. De tanta insegurança, eu trato mal a garota, para que ela desencane de mim, e isso é a pior coisa do mundo. Desprezo, não cumprimento, verdadeira sujeira. Não tenho o menor respeito com o sentimento alheio. Egoísta, eu sei. Sou um filho da puta, eu sei. Por isso sempre digo pra todo mundo que, se eu fosse mulher, nunca transaria comigo, pois além de sacana, sou egocêntrico. Hoje em dia melhorei.

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