UTI ( 3 )

394 9 2
                                    

Marcelo

-- Tico-Tico.

Que gracinha, era a Nanda que tinha acabado de entrar na UTI. É uma das minhas irmãzinha campineiras, isto é, mora comigo. Pernambucana, linda. Acho que deve ser descendente de holandês: loira, com a pele bem queimada do sol e olhos verdes. Nos conhecemos há uns seis meses, mas já éramos amigos pacas. Um dia, eu tava em São Paulo na casa de minha mãe, quando tocou o telefone.

--Queria falar com o Marcelo.

-- É ele mesmo.

-- Oi, tudo bem? Eu sou a Nanda, irmã de Zaldo. É que eu tô ligando de Recife, porque eu tô afim de morar em Campinas, e meu irmão me falou que tinha um lugar na tua casa.

Ficamos uma hora falando pelo telefone, batendo altos papos. Meu primo, que tinha passado as férias em Recife, já tinha-me falando sobre ela. Mas quando a vi, já em Campinas, não imaginava que fosse tão bonita. Pena que ela me conheceu quando eu tinha acabado de levar um pé-na-bunda da Ana. Eu estava mal pacas, a ponto de queimar a fotografia dela e jogar tudo o que ela tinha escrito pra mim no lixo. Levei a Nanda pra casa, ajudei-a a arrumar seu quarto, e demos uma bola.( Fumar). Já na primeira noite transamos, o que foi a maior cagada. Eu não estava nem um pouco inspirado, ou melhor, estava broxa mesmo. Ia ser difícil desencanar da Ana,  paixão das maiores. Uma mulher forte, com personalidade marcante. Taurina como eu. Foi com ela que eu descobri que orgasmo é ejaculação são coisas distintas. Minha relação com a Nanda já começou complicada, eu não conseguia tirar a outra da cabeça, estava querendo ficar sozinho e a coitada pagou o pato.

Quando ela chegou na UTI, eu fiquei emocionado.

-- Estou emocionado, tudo bem se eu chorar?

-- Tico- Tico.

Ela me deu um beijo na boca e me abraçou. Ficamos um tempo quietos.

--Que loucura que está acontecendo. Estou muito carente, sozinho. Que será que vai acontecer comigo? Esse hospital...

--Você não está sozinho, tem um montão de gente aí embaixo querendo te ver. Tá todo mundo torcendo por você.

--Sabe que me dá umas dores na barriga toda hora.

--Cocô?

--Não, acho que é nervoso. Eu tô muito sensível. Eu vejo vocês e me dá vontade de chorar.

Enquanto isso, entra também a Veroca, a Big( minha irmã caçula) e a Gorda. Todos fazendo festa, rindo baixinho.

--Trouxemos uns trecos pra escovar seus dentes.- disse a Veroca, tirando do saco uma escova, pasta, um líquido, fio dental.

--Tem também um creminho pra sua pele, que tá toda ressecada.

-- Deixa que eu limpo-falou a Nanda. Sentou na cama e começou a escovar os meus dentes delicadamente. Aliás ela tem um jeito incrível pra essas coisas. Daria uma ótima  mãe.

Veroca começou a contar das pessoas que estavam lá embaixo, de gente que havia ligado do Rio, de Brasília, da Bahia. Falou da bagunça em que a minha casa tinha-se transformado. Tava todo o mundo morando lá. Minha mãe trouxera até a empregada. Ia trabalhar de dia e, de noite, voltava. Era férias e todas as minhas irmãs estavam em Campinas. Só Nalu, que tinha que trabalhar, ficava em São Paulo. E a Eliana, que estava incumbida de receber os telefonemas e explicar o acidente. Disse também que não se falava em outra coisa, todo o mundo mandando mil forças, rezando, torcendo, fazendo macumbas.

--Mas afinal, quando é que vou sair daqui?

--Vai demorar um pouco, você não precisa mais da UTI, só que é muito arriscado transferir você. Aqui é um hospital pequeno, só tem um quarto que está ocupado.

-- Mas pode deixar, agora você pode receber visitinhas. Nós falamos com o Dr. Alex e ele tá fazendo uma exceção com você. Agora vamos sair que tem mais gente querendo te ver. Acordei  com minha mãe. Ela havia trazido um rádio, mas eu pedi pra não ligar, ia atrapalhar os outros.

--Tudo bem, eu ligo bem baixinho.

-- Que bom ver você.

Estava cansado. Minha mãe é dessas figuras fortíssimas, que transmite uma segurança incrível. Sabia que ela estava sofrendo pra burro por ver o filho todo estourado. O que minha mãe já passou na vida a fez ter essa cara de segurança em qualquer momento trágico. Você já imaginou uma mãe de cinco crianças ter a sua casa invadida por soldados armados com metralhadoras, levarem seu marido sem nenhuma explicação é desaparecerem com ele? Já imaginou essa mãe também ser presa no dia seguinte, com sua filha de quinze anos, sem nenhuma explicação? Ser torturada psicologicamente e depois ser solta sem nenhuma acusação? Já imaginou essa mãe, depois, pedir explicações aos militares e eles afirmarem que ela nunca fora presa e que seu marido não estava preso? Procurar por dois anos, sem saber se ele estava vivo ou morto. Ter que, aos quarenta anos de idade, trabalhar para dar de comer a seus filhos, sem saber se ainda era casada ou viúva. É duro, né? Nem Kafka teria pensado em tamanho absurdo. Fora as informações de que:

--Seu marido está em Fernando de Noronha. Eu mesmo o levei até lá.

--Está preso no Xingo e passado bem.

-- Está internado num hospício como indigente.

-- Está exilado no Uruguai esperando um momento melhor pra voltar.

Ou então ler as declarações de um general supostamente responsável pela prisão do meu pai:

-- Pergunte a mulher dele onde ele está, que ela sabe melhor que a gente.

Mais absurdo ainda foi o que uma testemunha, que também fora presa, contou, muito tempo depois:

-- Seu marido foi espancado na minha frente até cair no chão sobre uma poça de sangue.

À conclusão é de que seria difícil ele estar vivo depois de passar pelas mãos das nossas heróicas" forças armadas ".
Essa é mais ou menos a história da minha mãe. Só que, agora, com uma tragédia a mais pela frente:
o que dizer a um jovem de vinte anos, quando ele, depois de ter quase morrido, ficou paralítico? Nada. Diga apenas que o ama. E foi isso que ouvi.

-- Pode deixar que a gente vai resolver tudo. Você tem uma cabeça boa, vai sair dessa fácil.

-- Ei sei que vou, mas agora eu tô mais preocupado em sair daqui.

-- Eu já tô transando isso pra você, fique tranquilo.

Ela nem precisaria ter dito aquilo, tranquilo era uma coisa que eu ficava só em ouvir a sua voz.

Feliz Ano Velho Onde histórias criam vida. Descubra agora