P/(QUATRO)

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Gênio. Puseram o colete e apertaram. Havia também um parafuso que, ao longo do tempo, esticaria mais ainda meu pescoço. O negócio doía horrores, apertava o queixo e a cabeça. Depois de cinco minutos, não aguentava mais. Minha cabeça parecia que ia explodir. Doía tudo. Aguentei até onde dava, mas não resisti.

— Tira!

Ah! Que alívio. Resolvemos cobrir o colete com espuma, pra ficar mais confortável. Ótimo resultado. À tarde, fiquei mais tempo com ele. À noite, mais tempo ainda. Os dias foram passando e o ritual era o seguinte: café de hotel, papo com Chico e Santista na hora do banho, fisioterapia com Helô. Almoço, jornal com vovó e colete. Tirar uma soneca à tarde de mais ou menos uma hora, visitinhas. Fisio com Nana e Big, jantar, mais visitas e colete. Novela, fisio com quem estivesse no quarto, relaxamento da Veroca, pensar na medula, sonífero e dormir. O maior programão, né?

A moça do café entrava mais ou menos às oito horas. Só que eu e o acompanhante, desmaiados na cama, não conseguíamos acordar. A princípio deu confusão: ela precisava tirar a bandeja meia hora depois, mas, com o meu charme e minha virtude de ser chorão, conquistei a madame. Ela entrava em silêncio, punha a bandeja devagarinho e recolhia só na hora do almoço. Eu só acordava de fato com o Chico.

 Ele vinha me dar banho lá pelas 11 horas e, sabendo do meu sono pesado, passava no quarto 15 minutos antes, acordando-me. Abríamos a janela do quarto, deixando entrar a luz do verão paulista, e saboreávamos a mordomia samaritana. Era a hora que mais gostava, dia novo, novidades a surgir. A janela dava simplesmente para um bosque cheio de árvores. Longe dos barulhos de trânsito, só pássaros e o som do vento atravessando as árvores.

Finalmente chegavam os lavadores de doente. Me divertia. O Chico era um mulato claro, bem bonito, que tocava tumba na banda do Banespa e estava tendo incríveis problemas no casamento. O outro era o torcedor do Santos, a maior cara de malandro. Os dois ficavam o tempo todo brigando e eu servia de voto de Minerva. Eles brincavam comigo, dizendo que eu tinha um jeito difícil de falar. Vejam só, eu, falando difícil. Nunca pensei nisso. Tenho o maior bode das palavras complicadas, fica parecendo uma coisa formal, acadêmica. Eu adoro falar gíria, palavrão, mas falar "difícil", por essa não esperava. Tenho fases de encanar com uma palavra difícil, isso é verdade. Por exemplo: quando descobri o significado da palavra "paliativo", fiquei entusiasmado. Usava para tudo: essa questão, colega, é paliativa. Por favor, gatinha, não me dê um beijo paliativo.

 No colegial havia dois jornais. Um, do pessoal mais velho (Cinzel), cheio de frescura, intelectualizado. O outro era o nosso (Jornal Mural), mais debochado, tirador de sarro. Os dois grupos eram altamente rivais, inclusive no que dizia respeito às menininhas. Eles eram mais bonitos, ricos e sábios. Nós éramos desprezados, carentes. Nós os chamávamos de "multinacionais", pois sempre usavam roupas importadas. Um dia, veio uma carta pra redação acusando-nos de estarmos fazendo um "pseudojornal". Assinada pelo Cinzel. Nem sabíamos o significado de tal vocábulo: "pseudo". Nos informamos com o Flávio, professor de literatura. A opinião foi unânime: uma linda palavra. Na edição seguinte publicamos a tal carta com um recado agradecendo o presente de tão bonita palavra, e comunicamos que, a partir daquela edição, o jornal se chamaria Pseudo. 

Todos os artigos tinham vários "pseudo". Eu mesmo usei "pseudo" por um bom tempo. Passamos a chamar nossos inimigos mulherengos do Cinzel de pseudointelectuais. O Chico ficava pedindo conselhos pra mim sobre o que fazer com a esposa. Ele não aguentava mais a mulher.

— Mas então, por que casou?

Não soube me dizer. Precisava de alguém que tomasse conta dele, pois já tinha sido alcoólatra e tinha uma saúde péssima, sempre ficava doente. Era um caso difícil, não tinha dúvidas, mas não dava pra ajudar. Não entendia nada de casamentos. O santista só debochava. Dizia que ia arrumar um crioulão pra tomar conta dele.

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