Marcelo
Quando abro os olhos, na minha frente estão duas caras conhecidas: Verônica e Bundão.
--Agora você já pode receber visitinhas, mas por poucos minutos, pra não se cansar.- disse Elma.
-- E aí, tudo bem? Viram a cagada que eu fiz?- eu disse.
-- Pois é, a gente ficou preocupado.-disse Veroca.
-- No que é que vai dar tudo isso?-Eu falei.
-- Ninguém sabe dizer mas tá todo o mundo mandando a maior força.-disse ela.
-- Vai dar tudo certo-disse o Bundão, que até agora estava quieto.
-- Claro que vai. Eu tô ótimo, é só sair daqui e pronto.- Os dois olharam meio desconfiados.
-- Está ótimo. Eu estou bem, não estou?
-- É...- disse a Veroca.
-- Olha o que eu trouxe pra você.
No começo achei graça daquele presente. Um espelhinho e um pente, desses que vendem em banca de camelô. Pude ver como estava horroroso. Careca, cheio de espinhas, a cara inchada. Mexeu com a minha vaidade. Mas olhando pra minha cara, pode ver que realmente era eu que estava ali. O espelho nos dá esta sensação mágica de, subitamente, tomar consciência de si mesmo. É o momento que você se encontra com o que você representa para o mundo. "Ah então é assim que eu sou". Repare que em frente do espelho, a gente sempre faz uma careta. É porque achamos que somos diferentes daquilo que realmente somos. Então, a princípio, não acreditamos muito naquela imagem. Até achamos graça. Depois a examinamos direito, e viramos de perfil, de costas, mexemos o cabelo e dizemos: " Olha, como vai?".Espelho sempre foi uma coisa importante na minha vida. Eu adoro me ver num espelho, apensar de sentir certa vergonha se houver outra pessoa do lado. Em banheiros de rodoviária, por exemplo, sempre finjo que estou espremendo uma espinha, quando quero me olhar por mais tempo no espelho. Sempre que vou a uma festa e estou bêbado ou chapado, me tranco no banheiro e fico horas me cagando de rir na frente do espelho: "Olha lá você, safado. Está doidão". É engraçado como eu me estudo minuciosamente frente ao espelho. Presto atenção em todos os detalhes: "essa mecha de cabelo está feia, passo ela pra cá, e assim tá melhor". Acontece que ninguém percebe a mecha corrigida, isto é, pra maioria das pessoas tanto faz se ela está de lado ou do outro.
Mas foi aquele espelho do camelô que o Bundão me deu que me fez acordar. Me deixou consciente de que, agora, meu dia-a-dia ia ser: teto branco, dormir, teto branco, dormir, teto branco, dormir...
De repente começou. Não, não podia ser, não havia mosquito aqui. Mas era. Uma tremenda coceira na cabeça. Calma, tente e se concentrar. "Passa, desgraçada!" Mas ela não passava. Era grande, e eu não podia fazer nada. O braço não saia do lugar. Balançava a cabeça e nada. Não teve jeito.
--Elma! Elma!
Veio uma enfermeira bonitinha:--A Elma só vem de manhã.
--Da pra você coçar a minha cabeça?
--Claro.
Ah, que alívio. Ao mesmo tempo fiquei preocupado. E agora, será que sempre, quando der uma coceira, terei que chamar alguém? E se não tiver ninguém? Já imaginou que horrível coçar, coçar, coçar... Cada vez aumentando mais. Em filmes, essa coisas nunca acontecem: o mocinho é amarrado numa cadeira, enquanto o bandido sequestra a sua namorada. Ele percebe que o maldoso assassino esqueceu uma faca em cima da mesa ( o bandido é sempre burro). Então ele vai arrastando a cadeira até à mesa, encosta a mão na faca e, de repente, sente uma tremenda coceira no nariz. Ele não aguenta mais, solta a faca, se joga no chão, arrasta a testa no pé da mesa, mas não adianta nada. Ele, desesperado, grita. Então, joga-se na fogueira, preferindo a morte a se entregar aos domínios de uma terrível coceira.
--Como é seu nome ?- eu disse para a enfermeira.
--Ilma.
--Ilma? Tem uma Elma e uma Ilma, vocês são irmãs?
-- Não, mas moramos juntas.
E continuava coçando. Muito bonitinha. Me olhava com uma ternura que transmita uma cera segurança. Achei altamente sensual duas enfermeiras morando juntas e sozinhas nessa cidade moralista. Sei que é um tremendo preconceito meu imaginar que todas as enfermeiras tendem a ter mais relações sexuais do que outras profissionais. É o mesmo que imaginar que todos os enfermeiros são bichas. Mas a minha cabeça sexomaníaca não parava de imaginar: "quando estiver bom, vou sair daqui e ficar bastante amigo dessas enfermeiras, para transar com elas". Sacanagem, né? Também acho, ma eu sou assim mesmo. Depois eu desencano e acabo ficando amigo, mas a primeira coisa em que penso é sempre sexo.
-- Você mora aqui? - perguntou Ilma.
--Moro . É que eu estudo na Unicamp.
-- Ah é? O que você faz?
-- Engenharia agrícola.
--Que ano ?
-- Passei pro quarto.
-- Nossa, mas você parece tão moço. Mora em república?
--Mais ou menos.
Eu não gostava de falar que eu morava em república, porque minha casa era diferente. República lembra uma casa de dois quartos,onde moram dez pessoas, um monte de beliches, Uma mesa na sala e uma enorme televisão pifada. Minha casa é a mais transada : um quarto pra cada um: Nanda, Gureti, Helô, Mariùsa, Cassy e eu. Uma decoração linda, samambaia, som na sala, rede. Meu quarto era um barato. Eu o pintei todo de marrom-claro e, na parede da janela, um verde-óleo bem escuro, com umas árvores desenhadas. O teto azul-claro com o lustre parecendo o sol. Era a fase ecológica que eu estava passando: transando tecnologia alternativa, agricultura orgânica ( falando grosso: agricultura homeopática), essas coisas que viraram moda. Era lindo, em um dia de lua, apagava a luz do quarto. Como a parede da janela era escura, a janela ficava bem realçada, parecendo uma tela de cinema. Aquela lua fazia o teto brilhar, parecendo um planetário. Nessa coisa de pintar paredes de cores diferentes, eu imitei o Otaviano. É que ele tinha feito a sala dele toda marrom-escuro, com o teto bem verde, e tinha pendurado umas esteiras de palha na parede. Parecia que você estava no meio da selva. Lindíssimo.
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Feliz Ano Velho
Random(Fatos reais) Marcelo tocava guitarra,jogava futebol e estudava engenharia agrônoma . Aos vinte anos sofreu um acidente que o deixou paraplégico.