Capítulo sem título 31 - Continuação

52 1 1
                                    


Acabei o livro do Gabeira. Um tesão de livro. Fiquei fã do cara. Foi dado o alarme e logochegou o Caio, amigão, dono de uma editora, com uma pilha de livros na mão. Estavaentusiasmado por fazer alguma coisa realmente boa pra alguém: dar livros. A gente já tinha conversado antes e ele sabia que eu gostava tanto de ler, que, às vezes, me pedia pra escreverumas resenhas pro jornal da editora dele (Leia Livros). 

Mas eu, como conheço a minhaignorância literária, e sabendo que escrevo mal uma vez pichei num muro campineiro: Pelaliberdade de "Expreção" e Organização, nem pensava em mandar qualquer coisa. Aliás, éuma sorte minha gostar de ler. Devo isso um pouco à minha mãe, que contava uma história deque varava noites lendo às escondidas, pois seu pai não gostava que ela ficasse sem dormir ecensurava livros pornô, "como esse tal de Jorge Amado, que só escreve sobre putas daBahia". 

Eu fiz um colegial (Santa Cruz) que transava muito o lado intelectual dos alunos. Erauma elite que podia ter aulas de Literatura, Educação Artística, Filosofia. E todas essasmatérias eram basicamente em cima de grandes obras. Não sei se foi bom pra mim, aos 14anos de idade, ler Os Irmãos Karamazov, do Dostoiévski, ou A Náusea, do Sartre. 

Era umafase em que eu estava mais preocupado com sexo, drogas e rock. Mas não desprezo essecurriculum pra adolescente. Aliás, é bem interessante o modo como iam sendo dados oslivros. No primeiro ano, só literatura brasileira, de preferência a moderna: Mário de Andrade,Oswald de Andrade, Jorge Amado, Graciliano, Mário Palmério... 

No segundo ano, vieram os clássicos da filosofia moderna. Começamos por Sartre e suasnáuseas existencialíssimas. Terrível, capaz de desestruturar qualquer adolescente frágil comoeu. Percorremos Kafka e seus processos absurdos de vida. Da desestruturação, passamos a seradolescentes surpresos com a vida sem lógica. Daí fomos para Tolstói e seus dramalhões decoletividade (países e famílias). Bem, não é a vida que não tem lógica, mas as suasinstituições. Para terminar, uma cartilha cristã de um tal de Munie sei lá do quê, ridícula,exaltando o cristianismo como resposta pras nossas dúvidas.

Só aí entendi aonde os padres (em especial o padre Charboneau) queriam chegar. Umatremenda doutrinação para ganhar novos adeptos do cristianismo. Primeiro, destrói comSartre. Depois, vai montando os pedacinhos com doses divinas do Senhor. Alguns otárioscaíram nessa e, já no terceiro ano, fizeram acampamentos religiosos, encontros, missas. Nãosei se algum virou padre ou freira, mas acho que não. Burguesia não entra nessa.

 A maioriaficou indiferente, como toda "maioria". Eu e alguns colegas entramos em parafuso. Piramos.Crises existenciais típicas. Fazíamos laboratórios experimentais (transar o corpo). Comecei acompor músicas altamente introspectivas, que falavam da podridão e do falso sentir de cadaum. Da farsa, da vida inútil. Mais tarde, desencanei disso tudo e virei surfista.

Estava ficando cada vez mais convencido de que, realmente, teria que levar a sério esse papode fisioterapia. Logo após ter sentado um pouco, deu um clique no meu corpo e as coisascomeçaram a reagir melhor. Não sei se foi um fator psicológico qualquer, ou então aqueladesmaiada, o coração tentando vencer a força que o sangue precisava pra subir à cabeça, tudoisso me deu mais disposição.No dia seguinte, após a "pseudossentada", fazendo os exercícios de praxe com a Helô,descobrimos que o pulso estava dando sinal de vida. Ela mandava erguer, eu estava ajudandoum pouco. 

Formidável.

Sensacional. O braço estava muito fraco ainda, dependia dos exercícios, mas as mãos, quemsabe já não poderia estar tocando a Bachiana nº 4 do Villa-Lobos, ou, pelo menos, AsaBranca do Luís Gonzaga. Foi meu primeiro movimento novo, de fato. A lesão estavadescendo, e aí logo eu estaria dançando um rock com a Nana (minha parceira preferida).

 "Unidos do Paraíso pedem passagem para apresentar o seu samba-enredo de 1980

Paralisia vai-se embora, ô ô 

Minhas pernas vêm chegando, ê ê

 E vou sair daqui sambandoVestido de senhora, 

ô ôMexe um pouco aqui, rebola ali 

Dentro em breve, dentro em breveVou a pé até Jundiaí." 

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jun 10, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Feliz Ano Velho Onde histórias criam vida. Descubra agora