Capítulo XVII

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   No dia das corridas de Krasnoie a Selo, Vronski, mais cedo que de costume, foi comer um bife ao refeitório dos oficiais. Não precisava de ter cuidados muito rigorosos com a alimentação, pois o seu peso estava dentro dos setenta e dois quilos regulamentares, mas também não devia engordar, e por isso mesmo se abstinha de ingerir açúcar e farináceos. Os cotovelos na mesa, o dólman desabotoado, deixando ver o colete branco, parecia absorto na leitura de um romance francês aberto em cima do prato, quando apenas adotava essa atitude para mais facilmente se esquivar à conversa dos que entravam e saíam. O seu pensamento estava longe dali. 

   Pensava no encontro que ia ter com Ana depois das corridas, como ela lhe prometera. Como não a via há três dias, a si próprio perguntava se ela poderia cumprir a promessa que lhe fizera, pois o marido acabava de chegar de uma viagem ao estrangeiro. Como ter a certeza? Haviam-se encontrado pela última vez na casa de campo de Betsy, sua prima, pois deixara de freqüentar a casa dos Karenines. Era onde, no entanto, tencionava dirigir-se naquele momento e para lá se apresentar dava tratos à imaginação à procura de um pretexto plausível. 

   "Direi que Betsy me encarregou de perguntar se ela pretende assistir às corridas. Sim, com certeza, irei", decidiu ele. E era tanta a vivacidade com que a imaginação lhe pintava a felicidade daquela entrevista que no seu rosto, repentinamente levantado, resplandeceu a alegria. 

   — Manda dizer a minha casa que atrelem o mais depressa possível à caleche — disse ele ao criado que lhe trazia o bife numa bandeja de prata. Puxou a bandeja para junto de si e principiou a comer. 

    Na sala de bilhar contígua, por entre o ressoar das bolas, ouvia-se o ruído de vozes de mistura com gargalhadas. Dois oficiais apareceram à porta: um muito novo, de rosto delicado, que acabava de sair do Corpo de Pajens, e outro, gordo e idoso, com uns olhinhos apertados e uma pulseira no braço. 

    Vronski relanceou-lhes um olhar enfadado e voltando a fixar a vista no livro fingiu não os ver. 

    — Então, estás a fortalecer-te, hem? — disse o oficial gordo, sentando-se junto dele.

    — É o que vês — replicou Vronski, em tom enfastiado, sem levantar os olhos. 

    — Não tens medo de engordar? — continuou o outro, oferecendo uma cadeira ao camarada jovem. 

    — Que dizes? — inquiriu Vronski cada vez mais aborrecido e sem esconder um gesto em que havia repulsa.

   — Não tens medo de engordar? 

   — Rapaz, traz Xerez! — gritou Vronski, sem lhe responder, e depois de ter transportado o livro para o outro lado do prato, voltou a mergulhar na leitura. 

   O robusto oficial pegou na lista dos vinhos, apresentou-a ao mais novo e disse, olhando para ele: 

    — Aqui tens o que nós podíamos beber.

    — Vinho do Reno, se queres — respondeu o jovem, que, enquanto cofiava o imperceptível bigode, pousava em Vronski um olhar tímido. Ao ver que este não se mexia, levantou-se.

    — Voltemos para a sala de bilhar — propôs ele. 

    O oficial idoso seguiu-o docilmente. Iam sair quando apareceu um belo moço, o capitão de cavalaria Iachivne. Este mal lhes fez uma continência condescendente: foi logo direito a Vronski.  

   — Ah, cá está ele! — exclamou, deixando cair pesadamente a mão sobre o ombro do rapaz. Vronski voltou-se, pouco satisfeito, mas logo no seu rosto reapareceu a serenidade habitual.

    — Bravo, Alexei — exclamou, em voz de barítono, o capitão. — Come, e não deixes de beber um trago. 

    — Não tenho fome nenhuma. 

    — São inseparáveis — continuou Iachivne, relanceando um olhar irônico aos dois oficiais que se afastavam. E sentou-se junto de Vronski, encolhendo as longas pernas, moldadas no calção de montar, demasiado compridas para a altura das cadeiras. — Por que não foste ontem ao Teatro de Krasnoie? A Numerova realmente não representa nada mal. Onde estiveste? 

    — Demorei me em casa dos Tverskoi. 

    — Ah, sim? 

    Bêbedo, jogador, destituído de princípios, ou antes dotado de princípios unicamente imorais, Iachivne era o melhor camarada de Vronski no regimento. Este admirava-lhe a excepcional força física, que ele punha à prova, sobretudo quando bebia como uma ostra, ou passando noites inteiras sem dormir, se fosse preciso. Não admirava menos a sua força moral, que lhe granjeava a consideração um tanto inquieta dos superiores e dos camaradas e lhe permitia arriscar no jogo, mesmo depois das maiores farras, dezenas de milhares de rublos com uma serenidade e uma presença de espírito de tal modo imperturbáveis que no Clube Inglês o consideravam o primeiro dos jogadores. Além disso, Vronski sentia que Iachivne o estimava por ele próprio e não por causa do seu nome nem da sua fortuna. Eis por que lhe dedicava uma afeição sincera e teria desejado falar lhe — e só a ele — da sua paixão, convencido de que, apesar do desprezo de que dava mostras por toda a espécie de sentimentalismos, só ele, Iachivne, podia compreender a profundeza daquele amor, só ele, Iachivne, não faria dessa paixão um motivo de maledicência. Sem nunca lhe ter dito absolutamente nada, lia se lhe nos olhos que Iachivne sabia tudo e considerava o caso com a seriedade desejada.

     — Ah, sim? — disse o capitão. Um relâmpago lhe perpassou pelos olhos negros enquanto, em obediência a um tique familiar, metia entre os lábios a guia esquerda do bigode.

    — E tu, que fizeste ontem à noite? Ganhaste?

    — Oito mil rublos, três mil dos quais talvez nunca os verei 

    — Então não tenho remorsos de te fazer perder — disse Vronski, ruído, pois sabia que Iachvine apostara nele uma importância avultada. 

    — Não espero perder. Só temos a temer Makotine. E a conversa passou a girar em torno das corridas, o único assunto que no momento era susceptível de despertar o interesse de Vronski. 

    — Bom, acabei. — disse este, por fim —, podemo-nos ir embora. Levantou se e dirigiu se para a porta Iachivne ergueu se também, estirando as largas espáduas e as longas pernas. 

    — Não posso jantar tão cedo, mas vou beber qualquer coisa. Acompanho-te. Eh! Vinho? — gritou ele, na sua voz tonitruante, que fazia estremecer as vidraças, e não tinha rival nas vozes de comando — Não, é inútil! — exclamou, logo em seguida — Visto que voltas para casa, acompanho-te.

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora