Levine não podia olhar para o irmão com serenidade nem mostrar-se natural e tranqüilo na sua presença. Quando entrava no quarto dele, velavam-se-lhe os olhos e a atenção, incapaz de ver ou compreender pormenores da pavorosa situação do doente. Notava um terrível cheiro, via a imundície e a desordem à sua volta, dava-se conta de tudo isso sem saber como remediar o que via. Não lhe ocorria verificar a posição do doente, examinar-lhe o corpo debaixo da roupa, ver como teria ele dobradas as pernas enfraquecidas, se teria as costas apoiadas ou se seria possível aliviá-lo, ajeitando-o um pouco melhor. Se tentava pensar nesses pormenores, um calafrio lhe percorria a espinha. Estava firmemente convencido de que nada podia fazer-se para prolongar a vida de Nicolau nem para lhe minorar o sofrimento. E o doente, percebendo que o irmão considerava inútil tudo quanto se fizesse, exasperava-se, o que mais concorria para angustiar Levine. Estar no quarto do doente era-lhe penoso, mas ainda lhe parecia pior lá não estar. Não fazia senão entrar e sair, servindo-se de todos os pretextos, incapaz de ficar só com o irmão.
Kitty, porém, sentia e agia de maneira muito diferente. Quando viu o doente, teve pena dele. E a compaixão despertou na sua alma de mulher um sentimento muito diverso desse misto de horror e repugnância que o marido sentia. Experimentou a necessidade de agir, de se inteirar em todos os seus pormenores do estado de Nicolau e de o ajudar, portanto. E como nem um só instante teve dúvidas quanto a se deveria ou não fazê-lo nem tão-pouco duvidou da possibilidade de levar a cabo esse propósito, ei-la imediatamente de mãos à obra. As coisas em que o marido se sentia aterrado só de pensar nelas, chamaram logo a atenção de Kitty. Mandou Levine ao médico e à farmácia, ao mesmo tempo que ordenava à criada que trouxera consigo e a Maria Nikolaievna que varressem, limpassem o pó e esfregassem enquanto ela própria ajeitava a roupa da cama do doente. Por sua ordem foram trazidas coisas que faltavam no quarto e dele foram levadas outras. Várias vezes entrou no aposento, indiferente às pessoas que encontrava no corredor, carregando lençóis, toalhas, camisas, travesseiros.
O criado que servia o jantar aos engenheiros no refeitório comum acudiu várias vezes, pouco satisfeito, ao chamamento de Kitty, mas nem por isso deixou de cumprir as ordens que esta lhe deu. Com tão suave insistência ela o fazia, que não podia recusar-lhe nada. Levine não aprovava tudo o que via, certo de que nenhum resultado prático daí adviria para o estado do doente. Sobretudo, receava que ele se enfadasse. Mas a verdade é que não se enfadava; permaneceu calmo, embora um pouco confuso, seguindo com interesse tudo quanto Kitty fazia. Levine, ao voltar de casa do médico, aonde fora por indicação da mulher, quando abriu a porta do quarto viu-a que mudava a roupa do doente. Com o seu grande e alvo tronco, as suas enormes omoplatas, a sua saliente coluna vertebral e as suas proeminentes costelas, tudo descoberto, deixava que Maria Nikolaievna e o criado lhe introduzissem os compridos e delgados braços nas mangas da camisa. Mal Levine entrou, Kitty fechou a porta. Não olhava para o doente, mas assim que este se queixou, foi logo direita a ele.
— Depressa! — exclamou.
— Não se aproxime — murmurou, colérico, o enfermo. — Eu arranjo-me sozinho...
— Que diz? — perguntou Maria Nikolaievna. Mas Kitty ouvira e compreendera que Nicolau se envergonhava de que o vissem naquele estado.
— Eu não olho — disse ela, ajudando a enfiar o braço na manga da camisa. — Maria Nikolaievna, passe para o outro lado da cama e ajude-me. Por favor, Kóstia, vai ao nosso quarto e traz-me um frasco que está na bolsa direita da minha mala. Entretanto acabaremos a limpeza— acrescentou, dirigindo-se ao marido.
Ao voltar com o frasco, Levine encontrou o doente na cama e à sua volta tudo completamente mudado. O ar viciado exalava agora um cheiro a vinagre aromático que Kitty espalhara pelo quarto, soprando num pequenino tubo. O pó desaparecera, ao lado da cama havia um tapete, numa mesinha alinhavam-se os remédios, uma garrafa, a roupa necessária e a broderie anglaise de Kitty. Na outra mesa, junto à cama, estavam uma vela e medicamentos. O doente, lavado, penteado, deitado em lençóis asseados e reclinado em travesseiros, vestia uma camisa nova cujo colarinho branco lhe realçava a magreza do pescoço. Nos seus olhos, que se não apartavam de Kitty, havia um vislumbre de esperança.
O médico que Levine encontrara no clube não era o que tratava Nicolau. Auscultou minuciosamente o enfermo, abanou a cabeça, receitou e deu pormenorizadas indicações acerca dos remédios que ele devia tomar e a dieta prescrita. Aconselhou que tomasse ovos frescos quase crus e com o leite, aquecido a uma determinada temperatura, água de Seltz. Quando ele saiu, o doente disse ao irmão algumas palavras, mas Levine apenas conseguiu captar as últimas: "a tua Kátia." Percebeu, porém, pelo seu olhar, que estava a elogiar-lhe a jovem esposa. Depois chamou Kátia, que assim a designava.
— Já me sinto muito melhor — disse ele. — Se a tivesse junto de mim, há muito estaria curado. Ah, que bem que eu me sinto!
Procurou aproximar os lábios da mão da cunhada, mas, receoso de lhe desagradar, contentou-se em acariciá-la. Kitty apertou-lhe afectuosamente a mão entre as suas.
— Volte-me agora para o lado esquerdo e vão todos dormir — murmurou ele.
Apenas Kitty percebeu o que ele dizia, pois só ela pensava a todo o momento no que lhe poderia ser útil.
— Temos de o virar para o outro lado — disse ao marido. — Está habituado a dormir sempre assim. Vira-o tu mesmo, é uma violência chamar os criados. Eu não tenho forças. E a menina? — perguntou, dirigindo-se a Maria Nikolaievna.
— Tenho medo — respondeu esta.
Apesar do horror que Levine sentia em estreitar esse corpo pavoroso e em agarrar, por debaixo da roupa, esses membros que preferia ignorar, cedeu à vontade da mulher. Adotando uma expressão decidida, que Kitty muito bem lhe conhecia, meteu as mãos por dentro da roupa e pegou no doente. Apesar da força que tinha, sentiu-se perplexo com o peso extraordinário daquele corpo extenuado. Ao virá-lo para o outro lado, sentiu em torno do pescoço o braço enorme e delgado do irmão. Kitty sacudiu o travesseiro e virou-o rapidamente, ajeitando os cabelos do doente, que de novo se lhe tinham colado às fontes.
Nicolau reteve a mão de Levine. Este notou que ele queria alguma coisa e que a puxava para si. Abandonou-lha, o coração apertado. O doente aproximou-a dos lábios e beijou-a. Abalado pelos soluços e sem forças para falar, Levine correu para a porta do quarto.
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Anna Karenina - Liev Tostoi
RomanceÉ um romance do escritor russo Liev Tolstói. A história começou a ser publicada por meio da revista Ruskii Véstnik(O mensageiro russo), entre janeiro de 1875 e abril de 1877, mas seu final não chegou a ser publicado nela por motivos de desacordo ent...