Capítulo XIX

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   Deviam ter trazido na véspera o cavalo de Vronski para a cavalariça provisória, barraca de madeira armada à pressa nas cercanias do campo de corridas. Como dias antes deixara ao cuidado do treinador a obrigação de levá-la a passear, Vronski já esperava o estado em que ia encontrar a sua montada. Assim que viu aproximar-se a caleche, o cavalariço (groom, como lhe chamavam) mandou buscar o treinador. Este, um inglês esgalgado, com um tufo de pêlo no queixo, de paletó curto e botas altas, veio ao encontro do amo, no seu andar pesado e bamboleante, os cotovelos afastados, posição habitual dos jóqueis.

   — Como está a Frufru? — perguntou Vronski em inglês. 

   — Ali right, sir — replicou o inglês em voz gutural — É melhor não entrar — acrescentou, tirando o chapéu — Pus-lhe um açaimo e está agitada. Se nos aproximarmos, vai ficar nervosa. 

   — Mesmo assim, quero vê-la. 

   — Bom, está bem — consentiu o inglês, contrariado, falando sem abrir a boca. E franzindo o sobrolho tomou a dianteira com o seu passo desengonçado, abrindo os cotovelos. 

   Penetraram no patiozinho da barraca. O cavalariço, um rapaz bem posto e dê bom aspecto, abriu lhes a porta, de vassoura na mão. Cinco cavalos ocupavam a,cavalariça, cada um deles no seu box; o de Makotine, o concorrente de Vronski mais temível, Gladiador, um alazão robusto, devia estar lá Vronski, que não o conhecia, tinha mais curiosidade de vê- lo do que ver a sua própria égua, mas o regulamento das corridas impediu o de solicitar que lho mostrassem e até mesmo de perguntar o que quer que fosse a respeito dele. Enquanto seguia pelo corredor, o cavalariço abriu a porta do segundo box da esquerda e Vronski pôde entrever um possante alazão de patas brancas. Percebeu que se tratava de Gladiador, mas voltou se imediatamente para o lado onde estava a Frufru, tal como teria desviado a vista de uma carta aberta que não lhe fosse endereçada. 

   — É o cavalo de Ma... Mak ... não consigo pronunciar semelhante nome — gaguejou o inglês por cima do ombro, apontando com o polegar de unha suja o box de Gladiador. 

   — De Makotine? Sim, é o meu único adversário de respeito. 

   — Se o montasse — disse o inglês —, apostava no senhor. 

  — A Frufru é mais nervosa, ele é mais resistente — respondeu Vronski, sorrindo, satisfeito com o elogio. 

  — Na corrida de obstáculos — voltou o inglês — tudo depende da arte de montar, do pluck.

   De pluck, isto é, de energia e de audácia, não carecia. Vronski sabia o muito bem, e, coisa melhor ainda, estava absolutamente convencido de que ninguém teria mais pluck do que ele. 

   — Acha que não seria necessário obrigá-la a transpirar bastante? 

   — Absolutamente — replicou o inglês — Não fale alto, por favor, o animal enerva se — acrescentou com um aceno de cabeça na direção do box fechado, onde se ouvia o escarvar da égua na cama de palha. Abriu a porta e Vronski penetrou no box, escassamente iluminado por uma pequena fresta. Uma égua baia escura, com um açaimo, escarvava nervosa, a cama de palha fresca. Assim que os seus olhos se habituaram à escuridão do box, Vronski percorreu uma vez mais com um olhar maquinal as formas do seu animal favorito Frufru era uma égua de estatura média e de conformação algo defeituosa. Tinha os membros franzinos, o peito estreito, apesar do peitoral saliente, a garupa ligeiramente rebaixada, as pernas, sobretudo as traseiras, um pouco cambaias e não muito musculosas. Conquanto o treino lhe tivesse feito perder o ventre, nem por isso tinha o peito muito desenvolvido. Vista de frente, os ossos das pernas pareciam fusos, mas, vista de lado, pelo contrario, pareciam largos de mais. Apesar dos flancos encovados era comprida em excesso no tronco. Uma grande qualidade, porém, compensava todos esses defeitos tinha "sangue", esse "sangue" que "se revela", como dizem os Ingleses. Os seus músculos, muito desenvolvidos sobre uma rede de veias, que se lhe desenhavam por debaixo da pele fina, macia e elástica como cetim, pareciam duros como ossos. A cabeça delgada, com os olhos à flor da pele, brilhantes e alegres, alargava se até à boca e as narinas dilatadas, com as suas mucosas injetadas de sangue. Era um desses animais que dão a impressão de que só não falam por ser incompleto o seu mecanismo bucal. Pelo menos Vronski tinha a sensação de estar a ser compreendido por ela no momento em que a contemplava Assim que entrou, a égua relinchou e, enquanto revirava um dos olhos a tal ponto que a córnea se injetava de sangue, relanceou o outro para trás, para as pessoas que entravam, procurando libertar se do açaimo, balançando se ou num pé, ora no outro. 

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora