Capítulo XI

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   Nos primeiros tempos, após o seu regresso de Moscovo, sempre que acontecia a Levine corar e estremecer lembrando-se da vergonha de ter sido repelido, dizia para si mesmo "Corava e estremecia como agora, considerando-me um homem ao mar, quando me reprovaram em física e tive de repetir o ano e quando pus a perder aquele caso que minha irmã me confiou. E o certo é que presentemente, anos passados, lembro-me com espanto desses momentos de desespero O mesmo virá a suceder com a mágoa presente o tempo há de passar e tudo esquecerei." 

   Três meses passaram, contudo, sem que Levine esquecesse. O que impedia a fenda de cicatrizar era o facto de, tendo sonhado com a vida de família e julgando se preparado para ela, não só não haver chegada a casar mas encontrar-se mais longe do que nunca do casamento. Como toda a gente que o rodeava, sentia, com mágoa, não ser bom para o homem viver só, na sua idade. Lembrava se das palavras do vaqueiro Nicolau, um camponês ingênuo com quem gostava de tagarelar, antes da sua viagem a Moscovo "Nicolau, quero casar me", dissera-lhe dias antes. Ao que Nicolau respondera sem a menor hesitação "Há muito que o devia ter feito, Constantino Dimitrievitch." E nunca o casamento lhe parecera tão longínquo! O lugar estava ocupado e se porventura lhe vinha ao espírito arranjar quem substituísse Kitty entre as raparigas suas conhecidas, o coração não tardava a revelar-lhe o absurdo dessa resolução. Além disso, a lembrança do papel humilhante que julgava ter desempenhado atormentava o a cada momento. Por mais que dissesse a si próprio que não praticara nenhum crime, corava com essa recordação e com outras do mesmo gênero, igualmente fúteis, embora lhe pesassem mais na consciência que qualquer das más ações de que era culpado, como, aliás, toda a gente. 

   O tempo e o trabalho, contudo, acabaram por cumprir a sua tarefa. O dia a dia do campo, tão importante na sua modéstia, diluiu pouco a pouco todas essas impressões dolorosas. Cada semana apagava um pouco a lembrança de Kitty, Levine acabou mesmo por aguardar com impaciência a notícia do casamento dela, na esperança de que isso acabasse por curá-lo, tal como acontece ao dente que se arranca.

   Entretanto chegava a Primavera, uma dessas Primaveras agradáveis, sem expectativas e ludíbrios, uma dessas raras Primaveras que dão ao mesmo tempo alegria aos homens, aos animais e às plantas. E essa esplêndida Primavera ainda mais excitou Levine, reforçando o seu propósito de renunciar ao passado para organizar a vida solitária em condições de solidez e independência. Se muitos dos projetos que formulara no regresso tinham ficado no papel, o ponto essencial, a castidade da vida, não o atormentava mais: a vergonha que habitualmente se seguia a cada uma das suas quedas findara, tinha agora coragem para olhar as pessoas de frente. Por outro lado, Maria Nikolaievna prevenira-o, em Fevereiro, de que piorara o estado do irmão, sem que consentisse em deixar-se tratar, e Levine, assim que chegara a Moscovo, conseguira convencer Nicolau da necessidade de consultar um médico e, inclusive, de aceitar um empréstimo para tratar-se numa estação termal. Neste particular, não há dúvida de que podia sentir-se contente consigo mesmo. Como sempre no princípio da Primavera, os trabalhos agrícolas exigiram-lhe grande atenção. De resto, além das suas leituras habituais, consagrara-se durante o Inverno a estudos de economia rural partindo do princípio de que o temperamento do trabalhador agrícola é um facto tão absoluto como o clima ou a natureza do solo, queria que a ciência agronômica tivesse igualmente em conta estes três elementos. E deste modo, a despeito da solidão em que vivia, ou talvez como conseqüência dela, tivera uma vida cheia Só de longe em longe lamentava não ter mais ninguém além da sua velha ama a quem comunicar as ideias que lhe vinham à cabeça, pois lhe acontecia muitas vezes pôr se a falar diante dela de física, de agronomia e sobretudo de filosofia, assunto muito da predileção de Agáfia Mikailovna. 

   Custou a chegar o bom tempo. Um céu claro e glacial acompanhou as últimas semanas da Quaresma. Se o sol provocava, durante o dia, um certo degelo, durante a noite o termômetro descia a sete graus e a geada formava sobre a neve uma crosta tão dura que já não havia estradas praticáveis. O domingo de Páscoa foi todo ele de nevoas. Mas no dia seguinte, repentinamente, pôs-se a soprar vento quente, as nuvens acumularam se, e durante três dias e três noites caiu uma chuva morna e tempestuosa. Na quinta-feira o vento deixou de soprar e um nevoeiro cinzento espesso estendia se sobre a terra como para esconder os mistérios que a essa hora se estavam a realizar na Natureza a chuva, o degelo, o estalar dos blocos de gelo, o desabar das torrentes espumosas e amarelentas. Finalmente, na segunda feira de Páscoa, já à noitinha, o nevoeiro dissipou se, as nuvens diluíram se em flocos brancos e o bom tempo chegou finalmente. No dia seguinte pela manhã, um sol resplandecente acabou de derreter a fina capa de gelo que se formara durante a noite e o ar morno impregnou se dos vapores que subiam da terra. A erva velha ganhou imediatamente tons verdes, a erva nova despontou no solo, os rebentos dos viburnos, das groselheiras, das bétulas encheram se de seiva e sobre os ramos dos vimes, banhados de luz, as abelhas, abandonando os seus quartéis de Inverno, zumbiram alegremente. Invisíveis cotovias soltaram o seu canto por cima do veludo dos prados e das choupanas cobertas de gelo, os fradezinhos gemeram nas concavidades e nos pântanos submersos pelas chuvas torrenciais. Os grous e os gansos bravos vararam o céu com os seus guinchos primaveris. As vacas, cujo pelo irregular apresentava, aqui e ali, grandes peladas, mugiram nos pastos. Em volta das ovelhas balantes que começavam a perder o pelo, os cabritos saltitavam, canhestros. Ao longo dos atalhos humidos corriam os garotos, que deixavam no chão o desenho dos seus pés nus. Em torno dos tanques ouvia-se a algaraviada das mulheres a lavar a roupa, enquanto repercutia por todos os lados o machado dos mujiques reparando sebes e arados. A Primavera chegara realmente.

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora