Capítulo XXXI

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   Kitty conheceu Madame Stahl, e essa amizade, juntamente com a de Varienka, não só exercia grande influência nela como a consolava do seu desgosto. Um novo mundo, muito diferente do seu, um mundo todo elevado e nobre, se lhe revelou: dessa eminência pôde julgar o passado com todo o sangue-frio. Veio a compreender que para além da vida instintiva que sempre fora a sua até então existia uma vida espiritual na qual se penetrava pela crença. Essa religião não se parecia em coisa alguma com aquela que sempre praticara desde criança e que consistia em assistir à missa e às vésperas no asilo de viúvas, onde se encontravam pessoas conhecidas, e em aprender de cor com o sacerdote textos religiosos eslavos. Era uma religião nobre, misteriosa, que despertava os pensamentos mais elevados e os sentimentos mais puros e em que se acreditava não por dever, mas por amor. 

   Kitty aprendeu tudo isto sem que lho dissessem. Madame Stahl falava com ela como com uma criaturinha agradável, contemplando-a como quem recorda a sua própria juventude. Apenas uma vez lhe disse que as penas humanas só tinham consolação no amor e na fé e que para Cristo, na sua piedade para com os homens, não existiam penas insignificantes, logo mudando de conversa. Mas em todos os seus gestos, em todas as suas palavras, nos seus olhares "celestes", como Kitty lhe chamava, sobretudo na história da sua vida, que conhecia através de Varienka, Kitty descobria "o que era importante" e o que até então ignorava. 

    Por mais elevado que fosse, no entanto, o carácter de Madame Stahl, por mais emocionante que se revelasse a história da sua vida, por mais brilhante que se mostrasse a sua conversação, Kitty soube ver nela certos traços de carácter que a desconcertaram. Quando lhe perguntava pelos pais, Kitty notava que ela sorria ironicamente, coisa contrária à caridade cristã. Reparou também que, de uma vez em que Madame Stahl recebeu um sacerdote católico, postou-se de tal modo que, ficando-lhe o rosto meio oculto por detrás de um quebra-luz, sorria de forma significativa. Embora parecendo sem importância, a verdade é que estes dois pormenores perturbaram Kitty e levaram-na a duvidar de Madame Stahl. Pelo contrário, Varienka, só, sem família, sem amigos, nada lamentando e nada esperando após a sua triste decepção, constituía o tipo de perfeição com que sonhara. Aquele exemplo fazia-a compreender que para vir a ser feliz, tranquila e boa, como desejava, tinha de se esquecer de si mesma e amar o próximo. E Kitty desejou ser assim. Inteirada agora do "mais importante", já não se contentava em admirá-la; entregou-se com toda a sua alma a essa vida nova que se abria diante de si. Através do que Varienka lhe contou sobre a mãe adotiva e outras pessoas, traçou para si mesma um novo plano de vida. Como Aline, a sobrinha de Madame Stahl, de quem Varienka lhe falara muito, Kitty pensava que, onde quer que vivesse, procuraria os pobres, ajuda-los-ia o melhor que pudesse, distribuiria Evangelhos e leria as paginas do livro santo aos enfermos, aos criminosos e aos moribundos. A ideia de ler o Evangelho aos criminosos, como fazia Aline, seduzia a muito especialmente. Mas só em segredo sonhava com tudo isso, sem nada dizer à mãe ou à própria amiga. Aliás, enquanto aguardava a oportunidade de pôr os seus planos em execução numa escala mais vasta, Kitty arranjou maneira, no balneário, onde havia tantos doentes e infelizes, de praticar as novas regras da sua vida, imitando Varienka. 

   A principio a princesa apenas notou que Kitty se achava sob a influência de uma espécie de engouement, como costumava dizer, por Madame Stahl e por Varienka. Reparava que Kitty não só imitava estas nas suas atividades, mas até, involuntariamente, no andar, na maneira de falar e de revirar os olhos. Mais tarde compreendeu que, além da sua admiração por Varienka, na filha se estava a operar uma importante mudança espiritual. 

   A princesa notou que Kitty à noite há o Evangelho francês que lhe oferecera Madame Stahl, coisa que antes não fazia, e que se afastava das pessoas conhecidas da alta sociedade, preferindo lhes os doentes sob a proteção de Varienka e muito especialmente uma família pobre, a do pintor Petrov, que se encontrava enfermo. Kitty orgulhava se de desempenhar o papel de enfermeira dessa família. Tudo isso estava muito certo e a princesa nada tinha a recear sobretudo tendo em conta que a mulher de Petrov era uma senhora decente e que a princesa alemã, ao ter conhecimento das atividades de Kitty, lhe chamara "anjo consolador". Tudo estaria muito bem, no entanto, se não fossem os exageros. 

   — II né jaut jamais rien outrer (Nota 20) —dizia lhe. 

   Mas a filha não lhe respondia, limitava se a pensar no fundo da sua alma que não se devia falar em exageros nas obras cristãs. Que exagero podia haver em seguir o preceito que manda oferecer a face esquerda a quem nos esbofeteia a direita ou de oferecer a camisa quando nos tiram o capote? Mas a princesa não gostava de tais extremos e ainda mais lhe desagradava verificar que Kitty não lhe abria a alma por completo. Com efeito, ocultava à mãe as suas novas ideias e os seus pensamentos. Mantinha os em segredo, não por falta de respeito ou de afeto para com ela, mas apenas porque era sua mãe. Preferia confessá-los a qualquer outra pessoa menos a ela. 

   — Há muito que Ana Pavlovna não aparece — disse uma vez a princesa, aludindo à mulher de Petrov — Convidei-a, mas parece que ela se mostrou preocupada. 

   — Não reparei nisso, maman — replicou Kitty, ruborizando-se. 

   — Há já muito que não a visitas! — Amanhã iremos as duas dar um passeio pelas montanhas.

   — Não vejo nisso nenhum inconveniente — disse a princesa, surpreendida com a perturbação da filha e procurando adivinhar lhe a causa. Nesse mesmo dia Varienka foi jantar com eles e disse lhes que Ana Pavlovna mudara de ideias e desistia do passeio. A princesa notou que Kitty voltara a corar. 

  — Kitty, passou se alguma coisa desagradável entre ti e os Petrov — perguntou-lhe a princesa quando ficaram sós — Por que deixou ela de mandar os filhos e por que não aparece? 

  Kitty respondeu que nada acontecera e que não fazia a menor ideia da razão por que Ana Pavlovna estaria enfadada. Dizia a verdade. No entanto, se era certo que ignorava o motivo por que esfriara nas suas relações para com ela, adivinhava-o. Mas esse motivo era de tal natureza que não ousava sequer confessá-lo a si própria, e ainda menos à mãe, tio humilhante seria poder enganar se. 

   Lembrou uma vez mais todas as suas relações com essa família. Recordava a alegria ingênua que se pintava no bondoso rosto redondo de Ana Pavlovna aquando dos seus primeiros encontros os seus secretos colóquios acerca do enfermo, as suas conspirações para o impedirem de trabalhar, coisa de que estava proibido, e para o levarem a sair. Também recordou o carinho que lhe dispensava o filho mais novo do casal que a chamava "minha Kitty", não querendo deitar se se não fosse ela a fazê-lo. Como aquilo tudo era agradável! Depois recordou a delgadíssima silhueta de Petrov, o seu pescoço alto emergindo de um redingote castanho, os seus raros cabelos crespos, os seus interrogativos olhos azuis que a princípio haviam parecido terríveis a Kitty e os seus esforços doentios para parecer animado e enérgico na presença dela. E lembrou os esforços que ela própria fizera para nos primeiros dias dominar a repugnância que ele lhe inspirava, como em geral todos os tuberculosos, e o cuidado que punha nas coisas que tinha a dizer lhe. É também o tímido e comovido olhar que lhe dirigia e o estranho sentimento de com paixão e timidez que a embaraçavam bem com a consciência do seu ato de caridade .Que bom que tudo aquilo era! Mas isso fora no princípio das suas relações com a família Petrov. Agora de há uns dias para cá tudo se modificara Ana Pavlovna recebia Kitty com uma amabilidade fingida e estava sempre a observá-la, a ela e ao marido. 

   Seria possível que a comovedora alegria que Petrov mostrava ao ver Kitty fosse o morno do retraimento de Ana Pavlovna? 

   "Sim" pensava "havia qualquer coisa de estranho nela, algo que em nada se parecia com a sua natural bondade, ao dizer dois dias antes contrariada "Ele esperava a e não quis tomar o café sem a menina apesar de estar muito fraco." Talvez lhe tenha parecido mal que eu lhe ajeitasse a coberta. Foi uma coisa tão natural, mas ele ficou tão perturbado e agradeceu-me com tanta insistência, que até eu própria me senti pouco à-vontade. E também o retraio que me fez! E sobretudo aquele olhar conturbado e enternecido!... Sim, é isso!", disse Kitty de si para consigo, horrorizada. "Não, isso não pode ser, não deve ser! É tão digno de compaixão!" 

   Aquelas dúvidas envenenavam o encanto da sua nova vida.

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora