Capítulo XXI

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   Várias vezes tentara Vronski, embora nunca tão decididamente como agora, fazer Ana refletir na sua situação, mas acabava sempre por defrontar se com a mesma superficialidade e ligeireza de juízo. Era como se alguma coisa houvesse que ela própria não podia nem queria esclarecer consigo mesma, como se, ao principiar a falar, Ana, a verdadeira Ana, se ocultasse dentro de si mesma e surgisse outra mulher, estranha, alheia para ele, a quem ele não amava, a quem temia e que lhe oferecia resistência Mas naquela tarde resolvera dizer-lhe tudo. 

   — Que ele saiba ou não saiba, pouco nos importa. — disse Vronski, na sua habitual entonação firme e serena — Não podemos. Não pode continuar nesta situação, sobretudo agora. 

   — Que devemos fazer? — inquiriu Ana, com o mesmo sorriso ligeiramente irônico. 

   Ela, que tanto receara que Vronski tomasse de ânimo leve a notícia de que estava grávida, afligia-se agora que ele concluísse desse facto ser preciso tomar uma resolução enérgica. 

   — Confessar tudo e deixá-lo. 

   — Muito bem, mas suponhamos que eu o faça, sabe o que daí resultará? Eu lhe digo — volveu-lhe Ana, e uma cintilação maligna lhe transpareceu nos olhos ainda há instantes tão ternos "Gosta de outro e mantém com ele relações criminosas?", continuou Ana, imitando o marido e frisando, como ele o faria, a palavra "criminosas" — Tinha a prevenido das conseqüências de uma tal conduta no campo religioso, social e familiar. Não me quis ouvir. Agora não posso consentir que desonre o meu nome — "e o do meu filho", quis acrescentar Ana, mas deteve-se. Aquele filho não podia ser para ela motivo de troça — Em conclusão, com o seu estilo de funcionário, nítido e preciso, dirá que me não pode deixar partir e que tomara todas as medidas ao seu alcance para evitar o escândalo. E fará o que disser com a maior ordem e serenidade. Não se trata de um homem, mas de uma máquina, de uma máquina cruel quando se zanga — terminou Ana, recordando Alexei Alexandrovitch, em todos os pormenores do seu rosto e da sua maneira de falar, e atribuiu-lhe todo o mal de que se tornara culpada perante ele, na esperança de achar nisso compensação para a sua terrível falta. 

   — No entanto, Ana — interveio Vronski, em voz suave e persuasiva, na esperança de a convencer e sossegar —, seja como for, é preciso dizer-lhe e proceder depois como entendermos, de acordo com o que ele disser. 

   — Então, teria de fugir? 

   — E por que não? Esta vida não pode continuar. Não é em mim que penso, mas em si, que está a sofrer. 

   — Fugir, e tornar-me ostensivamente sua amante, não é verdade? — volveu-lhe ela, agressiva. 

   — Ana! — exclamou Vronski, repreensivo. 

   — Sim, tornar-me sua amante e perder tudo... tudo... — Quis dizer mais uma vez o "meu filho", mas não pôde pronunciar a palavra.

    Vronski não podia compreender que Ana, com a sua maneira de ser enérgica e honrada, pudesse suportar aquela situação de fraude sem desejar libertar-se dela, mas não se dava conta de que a causa principal era a palavra "filho", que ela não pudera pronunciar. Quando pensava no filho e nas suas futuras relações com ele depois de abandonar a marido, sentia tamanho horror pelo que fizera que não era capaz de raciocinar. Como mulher, apenas procurava tranquilizar-se a si mesma com ludíbrios, para que tudo continuasse na mesma e para que pudesse esquecer o tremendo problema que seria a situação do pequeno. 

   — Peço-te, suplico-te que nunca me fales numa coisa dessas — exclamou, de súbito, numa entoação terna e sincera, pegando-lhe carinhosamente na mão. 

   — Mas, Ana... 

   — Nunca, nunca. Deixa-me decidir sozinha. Estou consciente de todo o horror e de toda a baixeza da minha situação, mas não é tão fácil de resolver como julgas. Deixa-me decidir, e obedece-me. Nunca me fales nisso. Prometes?... Não! Não! Prometes-me?... 

   — Prometo-te, mas a verdade é que não posso estar descansado, sobretudo depois do que acabas de me dizer. Não posso estar descansado, quando sei que tu o não estás...

   — Eu? — repetiu Ana. — Sim, às vezes sofro, mas passará desde que não tornes a falar-me mais nisso. Só sofro quando o fazes. 

   — Não te entendo. 

   — Sei quanto é penoso mentir para a tua maneira honesta de ser, e tenho pena de ti. Penso muitas vezes que estragaste a tua vida por minha culpa. 

   — Era o que eu estava agora mesmo a pensar: como pudeste sacrificar tudo por mim? Não me posso perdoar a mim mesmo que te sintas desgraçada. 

  — Desgraçada, eu? — exclamou Ana, aproximando-se dele, fitando-o com um sorriso de amor e exaltação. — Sinto-me como uma esfomeada a quem deram de comer. Talvez tenha frio, talvez esteja esfarrapada e sinta vergonha, mas desgraçada, não. Desgraçada, eu? Não, esta é a minha felicidade... 

   A voz do filho que se aproximava ressoou no jardim e Ana, levantando-se, rápida, lançou à sua volta um desses seus olhares inflamados, que Vronski muito bem conhecia. Depois, num movimento impetuoso, agarrou-lhe na cabeça com as duas mãos cheias de anéis, contemplou-o demoradamente e, aproximando dele o rosto de lábios entreabertos, beijou-o na boca e nos olhos. Quis então repeli-lo e afastar-se, mas Vronski deteve-a. 

   — Quando? — murmurou ele, fitando-a num transporte. 

   — Esta noite, à uma — sussurrou Ana e, suspirando profundamente, seguiu, no seu passo rápido e ligeiro, ao encontro do filho. 

   A chuva surpreendera Seriocha e a criada em pleno parque, e ali se abrigara com ela num pavilhão. 

   — Até breve — disse Ana. — Ver-nos-mos nas corridas, não tarda muito. Betsy prometeu vir buscar-me. 

  Vronski viu as horas e saiu precipitadamente.

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora