Capítulo III

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   A sombra de desagrado que perpassou pelo rosto tão expressivo do marido não passara despercebida a Kitty. Por isso foi lhe muito agradável ver se a sós com ele; e assim que se adiantaram aos outros pela estrada poeirenta, toda coberta de espigas e de grãos de centeio, apoiou se amorosamente no seu braço, apertando-o contra si. Levine já esquecera a má impressão de momento para só pensar na gravidez da mulher. Era esse, aliás, de há muito para cá, o seu pensamento dominante e a presença da mulher despertava nele um sentimento novo, muito puro e muito suave, de todo isento de sensualidade. Sem nada ter que dizer, desejava ouvir lhe a voz, que tinha mudado, adquirindo, tal como o olhar, esse matiz de doçura e gravidade tão característico das pessoas que se consagram de corpo e alma a uma só e única ocupação. 

   — Não te irás cansar? Apóia te mais no meu braço — disse lhe ele. 

   — Não, gosto tanto de estar assim um bocadinho sozinha contigo. Gosto dos meus, mas, para te falar francamente, já tenho saudades dos nossos serões de Inverno, só nós os dois. 

   — Eram muito agradáveis, mas isto ainda é melhor — tornou lhe Levine, apertando lhe o braço. 

   — Sabes do que falávamos quando chegaste? 

   — De compotas. 

   — Sim, mas também da maneira como se costumam fazer declarações de amor. 

   — Ah! — exclamou Levine, que prestava menos atenção ao que Kitty dizia do que ao som da sua voz. Aliás, como iam entrar na mata, ele escolhia atentamente o caminho para evitar que Kitty tropeçasse. 

   — E também do Sérgio Ivanovitch e da Varienka — continuou ela. 

   — Que te parece? Notaste alguma coisa? Que achas tu? — perguntou, olhando-o bem de frente. 

   — Não sei bem... — replicou Levine, sorrindo. — Neste particular, nunca compreendi o Sérgio lá muito bem. Não te disse já... 

   — Que ele gostou de uma rapariga que morreu... — Sim, eu ainda era criança e não conheço a história se não de ouvi-la contar. No entanto, lembro me dele muito bem nessa altura. Que rapaz encantador! De então para cá tenho observado a maneira como se comporta com as mulheres: mostra se amável, algumas agradam lhe mesmo, mas dir se á que não existem para ele como mulheres.

   — É possível. Mas com Varienka... parece que há qualquer coisa... 

   — Talvez... no entanto é preciso conhecer o Sérgio... É um homem estranho, surpreendente. Apenas vive pelo espírito. Tem uma alma muito pura, muito elevada... 

   — Achas então que o casamento o diminuiria? 

   — Não, mas vive demasiado enfronhado na vida espiritual para poder admitir a vida real. E Varienka, bem vês, é bem a vida real. 

   Levine habituara se a exprimir ousadamente o seu pensamento sem lhe dar uma forma concreta; sabia que nos momentos de perfeito entendimento a mulher o compreenderia por meias palavras. E era esse o caso. 

   — Oh, não! Varienka pertence muito mais à vida espiritual do que à vida real. Não é como eu, e compreendo perfeitamente que uma mulher do meu gênero lhe não desperte amor. 

   — Nada disso. Ele gosta muito de ti, e para mim é muito consolador que tenhas conquistado a simpatia dos meus. 

   — Sim, é verdade que ele se mostra muito simpático comigo, mas... 

   — Porém não é o mesmo que com o pobre do Nicolau — concluiu Levine. — Esse gostou logo de ti, e tu pagaste lhe na mesma moeda... Por que não confessá-lo?... Censuro me a mim próprio muitas vezes por não pensar mais nele; acabarei por esquecê-lo! Era uma natureza estranha... e terrível... Mas de que estávamos nós a falar? — continuou, depois de uma pausa. 

   — Então achas que não é pessoa para se enamorar? — perguntou Kitty, traduzindo em palavras suas o pensamento do marido. 

   — Não digo isso — respondeu Levine, sorrindo —, mas não é acessível a qualquer fraqueza... Sempre o invejei, e agora mesmo continuo a invejá-lo, apesar de me sentir tão feliz. 

   — Invejá-lo por ele não ser capaz de se enamorar? 

   — Invejo o porque ele vale mais do que eu — disse Levine, depois de um novo sorriso. — Ele não vive para si mesmo, é o dever que o guia. Por isso tem todo o direito de se sentir tranqüilo e satisfeito... 

   — E tu? — perguntou ela com um sorriso brincalhão e enternecido. Se a interrogassem sobre o sentido daquele sorriso, não teria sabido explicá-lo formalmente. De facto, não acreditava que, proclamando se inferior a Sérgio Ivanovitch, o marido estivesse a ser muito sincero; obedecia simplesmente à muita amizade de que tinha pelo irmão, ao embaraço que lhe causava a excessiva felicidade em que vivia e ao desejo de aperfeiçoamento que o trabalhava.

   — E tu? De que estás tu descontente? — repetiu ela, sorrindo. 

   Satisfeito por verificar que ela não acreditava no seu descontentamento, Levine, inconscientemente, na sua satisfação, procurava como que forçá-la a pedir lhe que expusesse os motivos desse descontentamento.

   — Sou feliz, mas não me sinto contente comigo — disse ele. 

   — Como assim, visto que és feliz? 

   — Como hei de eu fazer te compreender?... Nada mais tenho a desejar neste mundo se não que tu não dês algum passo em falso. Então, não saltes assim! — exclamou ele, interrompendo o fio ao discurso para exprobrá-la por ter saltado de maneira demasiado brusca um ramo seco atravessado no caminho. — Mas —, prosseguiu ele — quando me comparo com outros, com meu irmão, principalmente, sinto que não valho grande coisa. 

   — Por quê? — teimou ela, sempre com o mesmo sorriso. — Pois tu não pensas também no próximo? Esqueces as tuas terras, as tuas explorações agrícolas, o teu livro? 

   — Não, nada disso é sério, e de há tempos a esta parte só me dedico a isto como a uma tarefa de que estou morto por me ver livre. A culpa é tua, de resto — declarou ele, apertando lhe o braço. — Ah, se eu pudesse gostar das minhas obrigações como gosto de ti! 

   — Então, que me dizes tu do paizinho? — interveio Kitty. — Também o achas má pessoa por nada fazer em benefício do bem comum? 

   — Ele? Não. Ele é bom, mas eu não tenho nem a sua simplicidade, nem a sua bondade, nem a sua clareza de espírito. Eu não faço nada e o não fazer nada atormenta me. E tudo por tua causa. Quando não te tinha a ti nem a "isso" — disse ele, relanceando os olhos ao ventre de Kitty, gesto que ela logo compreendeu muito bem —, entregava me aos meus afazeres de alma e coração. Agora, repito te, tudo isso é uma tarefa como outra qualquer. Faço as coisas como se estivesse a dar uma lição, finjo... 

   — Quererias tu, porventura, trocar a tua vida pela do teu irmão? Gostares apenas do teu dever e do bem comum? 

   — Não, com certeza. Aliás, sinto me demasiado feliz para raciocinar bem... Achas então que ele se vai declarar hoje mesmo? — perguntou, depois de uma curta pausa. 

   — Sim e não, mas gostaria muito que ele o fizesse. Espera — Kitty baixou se para apanhar uma margarida à beira do caminho. — Anda, arranca lhe as pétalas, vamos ver se ele se declara ou não — disse, entregando lhe a flor.

   — Sim, não, sim, não — dizia Levine, arrancando as delgadas pétalas brancas, uma a uma. 

   Kitty, porém, que seguia emocionada cada movimento dos dedos do marido, travou lhe do braço. 

   — Não, não tu arrancaste duas de uma só vez! 

   — Bom, então não conto esta pequena — concordou Levine, ponde de lado uma petalazinha minúscula. — Aí vem a tartana, que já nos apanhou. 

   — Estás cansada, Kitty? — gritou a princesa. 

   — Nada, mãezinha. 

   — Se estás cansada, sobe, que os cavalos são mansos e vão a passo. Porém não valia a pena, já estavam perto; continuaram o caminho.

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora