Capítulo XXVII

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   Todos, então, se puseram a reprovar aquele gênero de divertimento. Repetiam em voz alta a frase de um espectador "Depois disto só falta o circo com os leões". O pavor era tão geral que o grito de Ana, quando Vronski caiu, a ninguém surpreendeu. Mas imediatamente após operou se no rosto dela uma grande mudança, uma mudança definitivamente indecorosa. Perturbou se profundamente. Principiou a agitar se como um pássaro que cai na armadilha. Ora queria levantar se para ir não sabia aonde, ora se dirigia a Betsy, dizendo-lhe: 

   — Vamo-nos, vamo-nos. 

   Mas Betsy não a ouvia. Inclinada para baixo, falava com um general que acabava de se aproximar. 

   Alexei Alexandrovitch acercou se de Ana, oferecendo lhe galante mente o braço. 

   — Vamo-nos, se queres — disse lhe em francês. 

   Mas Ana, que escutava o que o general dizia, não reparou no marido. 

   — Dizem também que tem uma perna partida. É um disparate — comentava o general. 

   Ana, sem responder ao marido, ergueu o binóculo e fitou o local onde Vronski caíra. Porém, ficava tão longe e tanta gente se aglomerara naquele lugar que era impossível ver alguma coisa. Baixando o binóculo, dispôs se a partir, mas naquele momento chegava um oficial montado que vinha informar o imperador. Ana aproximou-se para ouvir. 

   — Stiva! Stiva! — gritou, chamando o irmão. 

   Mas este não a ouviu Ana dispôs se novamente a partir. 

   — Ofereço te o braço pela segunda vez, se queres ir — disse Alexei Alexandrovitch, tocando na mão de Ana. 

   Esta afastou se dele com repulsa, sem o olhar de frente, e respondeu. 

   — Não, não, deixa-me. Fico. 

   Viu que do local onde Vronski caíra vinha a correr um oficial que se dirigia à tribuna Betsy acenou lhe com um lenço, o oficial anunciava que o cavaleiro estava a salvo e que o cavalo partira a coluna vertebral. Ao ouvir isto, Ana deixou se cair na cadeira, escondendo o rosto atrás do leque. Karenine percebeu que a mulher chorava, sem poder reprimir as lagrimas nem os soluços que lhe agitavam o peito. Pôs se diante dela, tentando escondê-la, para lhe dar tempo a recompor-se. 

   — Pela terceira vez te ofereço o meu braço — repetiu, daí a momentos.

   Ana olhava para ele sem saber que dizer. A princesa Betsy veio em seu auxílio. 

   — Não, Alexei Alexandrovitch. Fui eu quem trouxe a Ana e prometi levá-la a casa. 

   — Perdoe me, princesa — replicou Karenine, com um sorriso cortês, mas olhando a fixamente nos olhos — Vejo que a Ana não se está a sentir bem e quero que volte para casa comigo.

   Assustada, Ana voltou se, e, levantando-se, submissa, tomou o braço do marido. 

   — Vou mandar a casa dele saber como esta e mandar te ei dizer — murmurou Betsy. 

   Ao sair da tribuna, Karenine dirigiu a palavra, como de costume, às pessoas que ia encontrando, e Ana viu-se obrigada a ouvir e a responder; mas não era a mesma, e pelo braço do marido caminhava como num sonho. 

   "Será verdade? Não estará ferido? Virá ou não? Vê-lo-ei hoje?", pensava.

   Subiu sem dizer palavra para a carruagem de Karenine e daí a pouco estavam fora da área do hipódromo. Apesar de tudo o que via, Alexei Alexandrovitch recusava-se a aceitar a evidência. No entanto, como apenas ligava importância aos sinais palpáveis, entendia de seu dever chamar a atenção da mulher para a inconveniência da sua conduta. Mas não sabia como fazê-lo sem ir longe de mais. Abriu a boca para falar, involuntariamente; porém, disse uma coisa muito diversa do que queria dizer. 

   — Não sei como nos deixamos todos atrair por estes espetaculos tão bárbaros. Tenho notado... 

   — Que dizes? Não te entendo — replicou Ana com desprezo. Alexei Alexandrovitch sentiu-se ofendido e imediatamente se pôs a falar no que pensara comunicar-lhe. 

   — Devo dizer-te... — principiou em francês. "Aqui temos a explicação", pensou Ana, assustada. 

   — Devo dizer-te que o teu comportamento de hoje foi indecoroso... 

   — Em que me comportei indecorosamente? — perguntou Ana em voz alta, virando rapidamente a cabeça para o lado dele e fitando-o nos olhos, não com a falsa alegria de há pouco, mas com uma resolução que mal podia esconder o temor que sentia. 

   — Cuidado — disse Alexei Alexandrovitch, mostrando a vidraça da carruagem aberta nas costas do cocheiro. E debruçou-se para fechá-la. 

   — Que te pareceu incorreto no meu comportamento?

   — O desespero que não soubeste esconder quando caiu um dos cavaleiros. 

   Karenine aguardava que ela respondesse, mas Ana permaneceu calada, o olhar fixo diante de si. 

   — Já te pedi que te comportasses corretamente em sociedade para que as más-línguas nada tivessem a dizer de ti. De uma vez falei-te, mesmo, das nossas relações íntimas; agora, não, agora falo das relações externas. Comportas-te de forma inconveniente e desejaria que isto não voltasse a repetir-se. 

   Ana não ouviu metade das palavras do marido: por maior que fosse o medo que ele lhe causasse, não pensava senão em Vronski. "Era dele que falavam quando diziam que o cavaleiro saíra ileso e que o cavalo partira a coluna vertebral?" Quando Alexei Alexandrovitch acabou, limitou-se o sorrir com fingida ironia, pois nada podia responder-lhe, porque nada ouvira do que ele dissera. Karenine começara a falar com resolução, mas, quando reparou no que estava a dizer, o medo que Ana sentia comunicou-se-lhe também. Ante o sorriso da mulher, uma estranha confusão se apoderou do seu espírito.

   "Sorri das minhas suspeitas; vai dizer-me o que me disse da outra vez: que são infundadas e que são ridículas." 

   Agora que se aproximava a revelação de tudo, Karenine desejava ardentemente que a mulher lhe respondesse com ironia, como fizera da outra vez, e que lhe dissesse que eram ridículas e infundadas as suspeitas. Era tão horrível o que sabia que estava disposto agora a acreditar em tudo. Mas a expressão do rosto de Ana, assustado e sombrio, nem sequer lhe prometia mentira. 

   — Talvez me engane — continuou Karenine. — Nesse caso, peço-te que me perdoes. 

   — Não, não te enganas — respondeu-lhe Ana, lentamente, olhando com desespero o rosto glacial do marido. — Não te enganas, estava desesperada e não posso deixar de o estar. Ouvia-te e pensava nele. Amo-o, sou amante dele. Não posso tolerar-te, tenho-te medo e ódio... Podes fazer de mim o que quiseres.

   E, deixando-se cair para trás na almofado da carruagem, Ana rompeu em soluços, escondendo o rosto nas mãos. Alexei Alexandrovitch não se moveu nem mudou a direção do olhar. O seu rosto adquiriu, porém, imediatamente, a solene imobilidade de um morto, e aquela expressão não se modificou até Peterov. Ao aproximar-se de casa, Karenine voltou a cabeça para o lado da mulher, sempre com a mesma expressão. 

   — Estou ciente, mas exijo que guardes as aparências até que — e a voz tremeu-lhe — tome medidas para salvaguardar a minha honra e te dê parte delas.

   Karenine desceu primeiro e ajudou Ana a descer. Diante do criado, apertou-lhe a mão e subiu de novo para a carruagem a fim de dirigir-se a Sampetersburgo.

    Mal ele partira, chegou um criado de Betsy com um bilhete para Ana: "Mandei a casa de Alexei saber como ele está; respondeu-me que está ileso, mas desesperado." 

   "Então virá", pensou Ana. "Fiz muito bem em confessar tudo." Consultou o relógio. Faltavam três horas ainda e a lembrança da última entrevista inflamou-lhe o sangue nas veias. 

   "Meu Deus, como está claro, ainda (Nota 13). É terrível, mas gosto de lhe ver o rosto e agrada-me esta luz fantástica... Meu marido! Ah! Sim... Graças a Deus tudo acabou entre nós."

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora