Capítulo XXXII

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   Ainda a cura de águas de Kitty não terminara quando o príncipe Tcherbatski, que fora até às termas de Carlsbad, de Baden e de Kissingen com o objectivo de visitar uns amigos russos, voltou remoçado, "cheio de espírito russo", como dizia. 

   Os pontos de vista do príncipe e da esposa sobre a vida no estrangeiro eram diametralmente opostos. A princesa tudo se afigurava maravilhoso e, apesar da sua posição na sociedade russa, no estrangeiro desejava parecer uma senhora europeia. Como, porém, era, na realidade, uma autêntica senhora russa, via-se obrigada a fingir, coisa que muito a aborrecia. Pelo contrário, o príncipe achava tudo ruim, não gostava da vida europeia e mantinha os seus hábitos russos, procurando mostrar-se no estrangeiro menos europeu do que o era na verdade. Agora voltava mais magro, com a pele do rosto flácida, mas na melhor disposição deste mundo. E a sua alegria foi maior ainda ao ver Kitty de todo restabelecida. Ao saber da amizade de Kitty com Madame Stahl e Varienka, ao ter conhecimento das observações da princesa sobre a mudança que se operara na filha, o príncipe alarmou-se. Vieram-lhe aqueles ciúmes que sempre sentia quando alguma coisa atraía a filha, receoso de que ela pudesse vir a subtrair-se à sua influência, afastando-se para regiões a ele inacessíveis. A verdade, porém, é que essas notícias desagradáveis se diluíram no mar de bondade e alegria que o animava e que se ampliava agora ainda mais com as águas de Carlsbad. No dia seguinte ao da sua chegada, o príncipe, com o seu grande capote, as suas faces enrugadas e um tanto balofas, emolduradas num colarinho engomado e um excelente humor, dirigiu-se com a filha ao balneário. 

   A manhã estava lindíssima; as casinhas alegres, muito limpas, com os seus jardinzinhos, o aspecto das criadas alemãs, trabalhadoras e joviais, de faces afogueadas pela cerveja e mãos vermelhas, o sol radioso, tudo isso alegrava o coração de uma pessoa. Contudo, quanto mais se aproximava da fonte, tanto maior era o número de doentes com que se cruzavam e o aspecto destes ainda mais desolador se apresentava em contraste com o ambiente da vida alemã, perfeitamente organizada. Kitty, habituada a esse contraste, já nem o notava. O sol ardente, a vegetação esplendorosa e a música jovial, para ela, eram a moldura natural desses rostos conhecidos, ora melhores ora piores, que se habituara a observar. Para o príncipe, todavia, a luz e o resplendor daquela manhã de Junho, os sons da orquestra que tocava uma valsa alegre, afiguravamse-lhe inconvenientes e até antinaturais na sua convivência com aqueles cadáveres ali reunidos, vindos de todos os pontos da Europa. 

   Apenas do orgulho que o invadia e desse como que retorno à juventude, ali com a filha querida pelo braço, no seu andar firme e nos seus membros vigorosos, sentia-se quase tão envergonhado diante de todas aquelas desgraças como se tivesse vindo nu para o meio da rua. 

  — Apresenta-me a todos os teus novos amigos — disse a Kitty, apertando-lhe o braço. — Até estou a gostar desta horrível Soden só pelo bem que te fez. Mas que coisas tão tristes, tão tristes, se vêem aqui! Quem é aquele?

   Kitty ia-lhe mostrando as pessoas conhecidas e desconhecidas que passavam perto. A entrada do parque, encontraram Madame Berthe com a sua dama de companhia, e o príncipe sorriu contente, quando viu a expressão enternecida da cega ao ouvir a voz de Kitty. Imediatamente se dirigiu ao príncipe, com a costumada exuberância francesa, e gabou-lhe a encantadora filha, guiando-a às nuvens e chamando-lhe "tesouro, pérola e anjo consolador". 

   — É o anjo número dois — disse o príncipe, sorrindo. — O número um é Mademoiselle Varienka.

   — Oh! Mademoiselle Varienka é um anjo autêntico, allez! — corroborou Madame Berthe. 

   Na galeria encontraram Varienka. Vinha, apressada, ao encontro deles, com uma elegante bolsa vermelha na mão. 

   — O pai chegou! — exclamou Kitty. 

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora