Capítulo XXX

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   Eis aqui o que a princesa apurou sobre o passado de Varienka e as suas relações com Madame Stahl, bem como sobre esta mesma: 

   Madame Stahl, que, segundo uns, tornara um inferno a vida do marido, enquanto outros diziam que fora ele quem a atormentara com a sua vida imoral, era uma senhora nervosa, sempre doente. Já estava divorciada quando deu à luz o primeiro filho, o qual morreu poucas horas depois. Os parentes, que lhe conheciam a sensibilidade, receando que a notícia lhe fosse mortal, substituíram a criança morta por uma menina que nascera naquela noite na mesma casa, em Sampetersburgo, e era filha do cozinheiro do palácio. Essa menina era Varienka. Madame Stahl veio a saber tudo mais tarde, mas continuou a criá-la. Pouco tempo depois, Varienka ficava no mundo sem pessoa alguma de família. 

   Havia mais de dez anos que Madame Stahl residia no estrangeiro, no Sul, sempre de cama. Uns diziam que criara fama de mulher virtuosa e muito temente a Deus, outros que era realmente o ser espiritual que aparentava e só vivia, de facto, para fazer o bem. Ninguém sabia qual a religião que professava — se a católica, a protestante, ou a ortodoxa —, mas uma coisa era indiscutível: mantinha relações de amizade com os altos dignitários de todas as igrejas e credos. 

   Varienka vivia sempre com ela no estrangeiro e todos os conhecimentos de Madame Stahl a estimavam e queriam. 

   Depois de se inteirar de todos esses pormenores, a princesa chegou à conclusão de que não havia nenhum inconveniente em que a filha se desse com Varienka, sobretudo porque a educação e os modos desta eram excelentes: falava correntemente francês e inglês e dissera-lhe desde logo, o que era o principal, que Madame Stahl, por causa da sua doença, lamentava muito estar privada de a conhecer. 

   De dia para dia ia crescendo o entusiasmo que Kitty sentia pela sua nova amiga, e no seu trato com ela descobria-lhe novas qualidades. 

   Quando soube que Varienka cantava bem, a princesa pediu-lhe que fosse uma tarde cantar a sua casa. 

   — Temos um piano e Kitty toca; é certo que o piano não é muito bom, mas dar-nos-á um grande prazer, se vier — disse a princesa, com o seu sorriso postiço, coisa desagradável a Kitty, que logo percebera estar Varienka bem pouco disposto a cantar. 

   No entanto, apareceu nessa tarde, trazendo consigo as músicas. A princesa convidara também Maria Evguenievna, a filha desta e o coronel.

   Varienka, que parecia indiferente à presença de pessoas desconhecidas, aproximou-se logo do piano. Não sabia acompanhar, mas entoando lia música muito facilmente. Kitty, que tocava, acompanhou-a. 

   — Tem um talento extraordinário — disse-lhe a princesa quando ela acabou de cantar a primeira peça. 

   Maria Evguenievna e a filha agradeceram à— jovem o ter cantado para elas e elogiaram-na. 

   — Veja quanta gente se juntou para a ouvir — disse o coronel, aproximandose da janela.

   Efetivamente, junto da janela reunira-se um grupo considerável de pessoas. 

   — Dá-me muita satisfação que isto lhes tenha proporcionado prazer — disse Varienka com simplicidade. 

   Kitty contemplava, orgulhosa, a sua nova amiga. Entusiasmava-a a arte, a voz, o rosto de Varienka, e sobretudo a sua maneira de ser. Esta parecia não atribuir qualquer importância ao facto de saber cantar e mostrava-se indiferente aos elogios. Era como se perguntasse: "Tenho de cantar mais ou chega?"

   "Se fosse eu, que orgulhosa estaria! Que alegria sentiria ao ver toda essa gente junto da janela! Para ela, é o mesmo: só a move o desejo de não dizer que não e de dar satisfação à mamem. Que há nela? Que lhe dará esta força de a tudo ser indiferente e de permanecer serena? Muito gostava de saber como se adquirem estas qualidades!", pensava Kitty, observando o rosto tranqüilo de Varienka. A princesa pediu-lhe que cantasse mais; Varienka cantou outra peça da mesma maneira, com naturalidade, rigor e perfeição, em pé, junto ao piano, marcando o compasso na caixa do instrumento com a mão fina e morena. A peça que se seguia no livro de música era uma canção italiana. Kitty tocou o prelúdio e voltou-se para Varienka. 

Anna Karenina - Liev TostoiOnde histórias criam vida. Descubra agora