Nada parecia ter mudado exteriormente nas relações entre os dois esposos, a não ser que Alexei Alexandrovitch de dia para dia levava uma vida cada vez mais laboriosa. Como nos anos anteriores, no começo da Primavera Karenine foi para umas termas no estrangeiro, na intenção de refazer a saúde, que se ressentia do esforço realizado durante o Inverno. E como de costume, estava de volta no mês de Junho, entregando-se de novo e com redobrada energia às suas tarefas habituais. E também, como de costume, a mulher instalara-se no campo, tendo ele permanecido em Sampetersburgo.
Desde aquela conversa com Ana, depois da noite em casa da princesa Tverskaia, nunca mais lhe falara das suas suspeitas nem dos seus ciúmes, e o seu tom habitual proporcionava-lhe agora as maiores comodidades nas relações com a mulher. Mostrava-se um tanto mais frio para com Ana, embora apenas parecesse um pouco desgostoso com a conversa que ela não quisera continuar. No seu trato com a mulher havia apenas um tom de enfado. "Não quiseste que tivéssemos uma explicação", parecia dizer-lhe mentalmente. "Pior para ti. Agora hás-de ser tu a pedi-la, mas hei-de ser eu a recusar. Pior para ti", dizia de si para consigo na atitude de alguém que houvesse tentado debalde apagar um incêndio e, aborrecido, ao verificar terem sido inúteis os seus esforços, dissesse: "Pois está bem, então arde!"
Alexei Alexandrovitch, tão inteligente e subtil no seu trabalho, não compreendia que era um erro tratar a mulher daquela maneira. Não o podia compreender, porque a situação em que se encontrava lhe era demasiado penosa. Eis por que encerrou e selou na alma o cofre em que guardava os sentimentos que lhe inspiravam a mulher e o filho. Ele, que fora sempre um pai carinhoso, desde o fim do Inverno tornara-se frio para com o pequeno, tratando com o mesmo tom irônico que usava para com a mulher. "Olá, rapaz!", costumava dizer.
Alexei Alexandrovitch opinava e dizia que em ano algum tivera tanto trabalho como naquele, sem reconhecer que ele próprio inventava esse trabalho, que era essa uma das maneiras de que dispunha para não abrir o cofre onde jazia o afecto para com a família e os pensamentos a respeito dela, pensamentos esses tanto mais terríveis quanto por mais tempo lá permaneciam encerrados. Se alguém tivesse ousado perguntar a Karenine o que pensava do comportamento da mulher, o manso e pacífico Alexei Alexandrovitch nada teria respondido e ter-se-ia irritado muito. Por isso se lhe notava certa severidade e altivez na expressão quando lhe perguntavam pela saúde da esposa. Não queria pensar nem na conduta nem nos sentimentos de Ana, e, efectivamente, não pensava. A residência de Verão habitual dos Karenines ficava em Peterov, e a condessa Lídia Ivanovna também ali costumava passar o Verão, numa casa vizinha, a cada passo em contacto com Ana. Naquele ano a condessa não quis ir para Peterov e nem uma só vez visitou Ana Arkadievna; em compensação, conversando certo dia com Alexei Alexandrovitch, permitiu-se fazer alusões à inconveniente amizade de Ana com Betsy e Vronski. Karenine interrompeu-a, severo, e disse-lhe que a mulher estava acima de quaisquer suspeitas, e desde então evitou tornar a encontrar-se com a condessa Lídia. Decidido a nada saber, não reparava que na sociedade havia já muita gente a olhar para a mulher com certa reserva. Como nada queria ver, nem sequer a si mesmo perguntava por que quisera ela instalar-se em Tsarskoie, onde vivia Betsy, e não longe do acampamento de Vronski. Embora não se permitisse a si próprio pensar em tal, no fundo da sua alma — sem o confessar a si mesmo e sem prova? ou sequer suspeitas — tinha a certeza de que era um marido enganado, e sofria com isso profundamente.
Quantas vezes durante oito anos de vida conjugal feliz, ao ver mulheres infiéis e maridos enganados, Alexei Alexandrovitch dizia a si mesmo: "Como é possível chegar a uma situação destas? Por que não resolver uma situação tão terrível?" Em compensação, agora, que a desgraça lhe caíra em casa, não só não pensava em resolver a situação, mas, inclusive, não se dava por achado, precisamente por ser aquilo demasiado terrível e antinatural.
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Anna Karenina - Liev Tostoi
RomantikÉ um romance do escritor russo Liev Tolstói. A história começou a ser publicada por meio da revista Ruskii Véstnik(O mensageiro russo), entre janeiro de 1875 e abril de 1877, mas seu final não chegou a ser publicado nela por motivos de desacordo ent...