22 de fevereiro
Era o primeiro dia de aula, mas Helena já estava cansada antes mesmo de começar. Para ela as férias não haviam existido, entre as horas de trabalho no laboratório e os preparativos para a recepção dos calouros, organização das festas e das Semanas de Desenvolvimento Acadêmico, as semanas livres de aula haviam passado voando. Mal teve tempo para se dedicar a si mesma, devotando todo o seu tempo àquela universidade que sugava até a última gota da sua sanidade mental. O único motivo para não ser colapsado, estafada, foi que em cada uma dessas atividades tinha Pedro ao seu lado. Não exatamente ao seu lado, mas apenas ter sua presença ali, cingindo-a, perfumando o ambiente com seu cheiro de café era o suficiente para que suas energias fossem recarregadas.
Ela olhou ao redor pelo jardim da faculdade, os olhos afiados percorrendo rapidamente o espaço reservado para o trote. Trote não, recepção. A nova administração da faculdade havia banido o termo do vocabulário dos alunos na tentativa de apagar da memória e arrancar da história da instituição o incidente ocorrido no semestre anterior. Helena achava um exagero. Acidentes acontecem, se aquela garota não era capaz de aguentar a quantidade de bebida que consumiu, bem, não deveria ter participado para começo de conversa. Eram todos maiores de idade ali e ninguém era forçado a nada, penalizar todo o corpo discente pela fraqueza de uma aluna que tomou decisões erradas não era justo.
Com um suspiro, enquanto alisava o vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo esguio, Helena decidiu que isso pouco importava. Os calouros já estavam começando a chegar, era fácil reconhecer as carinhas novas se amontoando desorganizadamente, vestindo amarelo como se fossem pintinhos assustados fugindo da raposa má. Ela gostava dessa cena, especialmente porque em sua mente ela era a raposa má.
Percorreu os dedos pelos fios lisos acobreados e prendeu o cabelo em um coque com a caneta. Praguejou pelo calor maldito do Rio de Janeiro enquanto abanava o pescoço com a prancheta que levava em sua mão, saindo à procura do restante dos membros da Comissão. Tinha certeza que estavam sentados na sala do Diretório Acadêmico, vagabundeando ao invés de irem recepcionar os alunos. Deixando em suas costas as responsabilidades como sempre faziam, como os belos irresponsáveis que eram. A passos largos, equilibrando-se o melhor que podia sobre as plataformas em seus pés, atravessou o campus, desviando das pessoas perdidas e dos grupos de amigos se reencontrando depois de algumas semanas de férias, mas que se comportavam como se não vissem uns aos outros há anos.
Cumprimentou o guardinha na entrada do prédio com um aceno rápido e subiu a rampa até o primeiro andar. Passou pela máquina de refrigerante e fingiu que não ouviu seu nome ser sedutoramente chamado pelas bebidas geladas e borbulhantes. Sua garganta ainda queimava pela tentativa bem-sucedida de se livrar da quantidade ridiculamente grande de comida que havia ingerido no café da manhã, não precisava de uma segunda rodada tão cedo. Tocou a pequena bolsa que carregava, tentando sentir a cartela de comprimidos por sobre o couro macio. Não tomaria outro hoje, prometeu a si mesma. Era apenas uma medida de segurança.
Com um empurrão seco, abriu a porta da sala escondida no fim do corredor que abrigava o Diretório e imediatamente os risinhos cessaram. Ela encarou com a sobrancelha erguida o grupo que estava jogado no sofá bebendo cerveja às nove da manhã, conversando asneiras ao invés de estar no jardim cumprindo suas obrigações.
Bianca, que estava sentada em uma posição que sabia ser condenada pela amiga, prontamente se aprumou no lugar, colocando-se na sua melhor postura corporal, e encarou Helena com os olhos cheios de medo e admiração. Ela achava a mulher assustadora, mas com o tempo desenvolveu uma relação simbiótica doentia, onde precisava da sua aprovação até mesmo para respirar. Helena era tudo que ela queria ser, era tudo que ela queria ter. Bianca percorreu os olhos por toda sua extensão corporal em um misto de admiração e medo. As tiras grossas envolviam seu tornozelo fino, o vestido azul pouco acima dos joelhos, que se acinturava marcando seu o busto delicado, sedutoramente revelando nada mais do que a suave curva de seus seios. Os cabelos acobreados estavam presos em um coque, fios soltos moldando seu rosto ovalado, contrastando com sua pele branca e olhos verdes. Os brincos pequeninos, apenas duas bolinhas peroladas, deixavam exposto o seu pescoço esguio e Bianca precisou se concentrar para não se perder ao encarar aquela pintinha em seu ombro direito.
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Obsidiana Fraturada
General FictionObsessão. É difícil saber de onde vem, como começa, e em um ponto da história é difícil até de lembrar qual a causa inicial. Algumas pessoas têm um magnetismo próprio, alguma coisa que marca sua alma e faz com que automaticamente se tornem cent...