Epílogo

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Três anos depois

Um feixe de luz, discreto como a luz da manhã que se iniciava, invadia o quarto pela fresta da pesada cortina, verde como esmeralda. Os raios brancos tocavam o chão de madeira, revelando os pequenos pontinhos brilhantes de poeira que, rebeldes, voavam desordenadamente. O burburinho atravessava a janela, anunciando mais um dia de trabalho, mais um ciclo a ser seguido. Lá fora, uma senhora carregava um pesado cesto repleto de maçãs avermelhadas, brilhantes, equilibrando a encomenda em seus braços rechonchudos enquanto desviava das crianças que corriam em direção à escola, atrasadas para a aula que estava prestes a começar. Em sua mente, listava os afazeres do dia, movendo os lábios ao formar as palavras, cumprimentando quem passasse em sua frente. Mais um dia, mais afazeres a serem cumpridos.

— Você vai fazer a gente se atrasar de novo. — A voz de Vicente, que enfiou a cabeça pela porta do quarto que agora dividiam, invadiu seus sentidos e ele ergueu a mão, pedindo por mais um segundo, só mais um segundo.

Vicente revirou os olhos, mas o sorriso estava em seu rosto. Luís era um caso perdido quando se sentava em frente do computador e perdia-se em seus livros. O diploma pregado na parede agora servia apenas de enfeite de uma profissão nunca exercida, abandonada por uma paixão que não mais podia ficar oculta.

— Bianca pode esperar um minutinho — Luís argumentou, os dedos fortemente batendo no teclado. — É o último capítulo, faltam só mais alguns parágrafos!

Faltavam só mais alguns parágrafos a semanas, e Vicente sabia que era uma causa perdida. Saindo do quarto e deixando o outro mergulhado nas palavras que brotavam na tela, puxou o celular do bolso e mandou uma mensagem para Bianca, dizendo que chegariam em breve, mas não tão breve assim.

Aproveitou o breve período de tempo para brincar com suas fotografias, que agora se acumulavam em uma pilha, deixadas de lado pelos longos dias de trabalho.

Ele estava feliz. Finalmente.

Não sabia o que responder quando perguntado sobre sua relação com Luís, porque nunca conversaram sobre isso. Foi uma evolução natural que fez com que, eventualmente, começassem a dividir uma casa, uma cama, mesmo que não no sentido convencional. O laço afetivo criado entre os dois sobrepujava convenções sociais e, para sua surpresa, Luís parecia plenamente satisfeito em tê-lo por perto. E, ao contrário do que esperava, ao contrário do que suas experiências passadas o ensinavam, sexo nunca foi um problema nesse relacionamento pouco convencional.

Discutiram exaustivamente o assunto, as vontades e ausências delas, e, nas poucas vezes ao longo dos anos em que Vicente manifestara qualquer desejo sexual por aquele que já dominava seu coração, fora recebido calidamente nos braços do outro. E, quando não o fazia, passavam incontáveis noites entre risos e conversas como sempre fora na relação fácil de proveitosa dos dois.

Um pontinho de luz, de esperança de um dia melhor no meio do caos que havia se tornado a vida de todos anos antes.

Sobreviveram.

Tornaram-se mais fortes.

Juntos.

O telefone vibrou com uma mensagem malcriada de Bianca, reclamando do atraso, ameaçando comer todo o bolo de chocolate sozinha. Ainda não sabia se Helena apareceria, o contato com a garota era irregular, com altos e baixos, entre idas e vindas daquele relacionamento que continuava a destruir cada pedaço de si. Mas parecia que as coisas estavam melhorando recentemente. Ela estava mais presente, e Pedro cada dia mais distante da sua vida. Um dia de cada vez, um passo a cada dia, uma vida nova a cada nascer do sol.

Talvez de todos Helena fosse a que lutasse mais para se manter de pé, e estava conseguindo. Aos poucos conseguia. E não desistia de lutar. Sua luta era contra si mesma, e, lentamente, vencia.

Vicente sorriu com a leveza da mensagem de Bianca, que refletia a serenidade que agora circundava a maior parte dos dias da garota. E, quando ela começava a ser sugada pela escuridão que ainda habitava parte da sua alma, pelo menos não estava sozinha. Nunca mais estaria sozinha.

Nenhum deles precisaria estar sozinho.

Nunca mais.

Porque tinham uns aos outros.

Porque, em algum lugar, os olhos de obsidiana velavam seus dias e noites.

Obsidiana FraturadaOnde histórias criam vida. Descubra agora