28 de julho — a festa IV
Laura viveu sua vida inteira com a certeza de que o inferno era quente. Almas pecadoras sofrendo por toda a eternidade sob as labaredas da perdição. Semblantes destorcidos daqueles que há muito perderam a batalha para os demônios. Quase duas décadas de vida foram necessárias para que ela entendesse que não há demônio mais perigoso que certezas depostas.
Que de quente o inferno só tinha a fama, mas na verdade era frio como o gelo que congelava seu coração sem esperança. A verdade é que ela nunca imaginou se ver nessa situação. Nunca imaginou que cada passo da sua vida a levaria ali. Naquele momento. Naquele lugar.
A música alta e agressiva embaçando seus pensamentos, tirando de si a capacidade de raciocinar com clareza. Sua visão, nebulada pela áurea de incerteza, pulsava em vermelho, cor da raiva que sentia, do tormento que a consumia, da dor que irradiava de cada poro de sua pele e percorria cada veia, cada célula, cada fibra de seu corpo, intoxicando-a. Envenenando seu sangue, sua alma, sua voz.
Gostaria de dizer que estava em pleno controle de suas emoções. Gostaria de ser capaz de mentir para si mesma e dizer que nada além da mais imparcial razão comandava seus passos quando ela fechou a porta do quarto atrás de si com uma batida seca, colocando uma barreira entre si a Bianca, e Helena, e Pedro. Gostaria de conseguir se convencer que não era o ódio cego, a inconformação que torturava seus dias, que guiava cada movimento de seu corpo naquele momento.
Gostaria.
Mas não o fez.
— Como você consegue dormir à noite? — Em sua mente, as palavras foram ditas destilando veneno, naquele tom de voz perfeito para acertar o ponto fraco e cutucas as feridas, para fazer doer. Mas no momento em que subiram por sua garganta, queimando suas cordas vocais, as palavras soaram como um grito estrangulado, esganado, desesperado, enlouquecedor. Seu autocontrole estava por um fio, pendendo na beira de um abismo, amarrado por um nó fraco e malfeito a ponto de partir.
Qualquer um que a olhasse naquele momento veria a histeria vazando por seus poros, escorrendo por seus olhos como chuva ácida que destrói plantações – e vidas. Ouviria os gritos silenciosos. Sentiria a onda de desespero invadindo o ambiente.
E não entenderia o motivo.
Laura mal entendia.
Havia tomado para si as dores alheias e as misturado às suas próprias com tanta precisão que não conseguia mais discerni-las. Na tentativa de diminuir o peso daqueles que a cercavam, acabou, involuntariamente, tomando para si o peso, como Atlas, apoiou o mundo em suas costas, e, agora, sentia seus músculos repuxarem, lutando contra o peso esmagador do céu que ameaçava cair.
Quando Jorge a olhou, por cima do ombro, os olhos acusadores penetrando sua pele, seus sentimentos desordenados pareceram se alinhar, como planetas que orbitam, como estrelas mortas que brilham no céu escuro. Foi o desdenho. O desdenho em sua expressão, o menosprezo descarado que fluiu, líquido como plasme, quando ele a olhou de cima a baixo, analisando sua postura, sua presença.
— Eu fecho os olhos — ele respondeu, inclinando a cabeça para o lado, mastigando as palavras como se falasse com uma criança que precisa de explicação para as coisas mais simples —, é assim que eu durmo.
Ele se virou em sua direção, projetando seu corpo sobre o dela. O presidente da atlética, jogador de elite do time da faculdade. O porte altivo e imponente sendo usado a seu favor. Intimidador. Sobrepujante. Ameaçador.
Ela não conseguia começar a entender o que Bianca sentiu naquele dia, naquela noite, abandonada à própria sorte — ao próprio azar. Não chegava perto de entender o desespero e o sentimento de abandono que era se ver obrigada a, todos os dias, se forçar a sair da cama e, como se não fosse difícil o suficiente, enfrentar Jorge, encarar seu agressor. Todos. Os. Dias. Não ouvia os gritos que ecoavam na cabeça da outra, o nó na garganta e o gosto de bile constante. Não sentia as facadas invisíveis que cortavam a pele, pinicavam a alma, corroíam a mente. E, mesmo sem saber, mesmo sem sentir, se viu dando um passo para trás quando ele andou em sua direção.
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Obsidiana Fraturada
General FictionObsessão. É difícil saber de onde vem, como começa, e em um ponto da história é difícil até de lembrar qual a causa inicial. Algumas pessoas têm um magnetismo próprio, alguma coisa que marca sua alma e faz com que automaticamente se tornem cent...