Capítulo 27

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28 de julho — antes da festa

Algumas conversas queimam a alma, contorcem o coração ferido, enchem de medo o corpo dos desesperados. Palavras não ditas pesam no peito e queimam a garganta quando tentam ganhar o mundo em sentimentos desconexos que recheiam de insegurança ações incertas. Algumas coisas precisam ser postas em palavras, ditas em voz alta, mesmo que as consequências não possam ser medidas e cada segundo que passe do relógio faça parecer que o mundo vai explodir em pedaços pequenos, quebra-cabeça sem encaixe em um cenário pós-apocalíptico.

Os ponteiros giram, devagar, o tempo parece parar e passar rápido demais enquanto você tenta descobrir o que o outro está pensando, em como aquelas palavras estão sendo processadas na mente do ouvinte.

Vicente estava sentado na cama, estalando os dedos, sem saber o que dizer, o que fazer, o que pensar, o que sentir. Os papéis estavam invertidos, era ele agora quem abria seu coração e se expunha ao mundo, enquanto Luís, de pé, o encarava sem saber o que dizer.

Essa conversa já devia ter acontecido há muito tempo, não é verdade? Meses atrás, quando o outro tomara coragem de revelar-se para o mundo, submetendo-se à intolerância e intransigência de pessoas vazias e baixas que preenchem seu coração com a dor alheia.

Acovardou-se por tempo demais, arrumando desculpas, justificativas vazias para esconder seu coração. Não cometera nenhum crime — e tantos outros que o fizeram jaziam impunes —, mas mesmo assim teimava em esconder-se como o criminoso que não era.

Vicente constantemente lembrava de suas experiências passadas e custava a entender por que relacionamentos eram tão complicados. Qual motivo para exigir algo que fere a alma, o corpo e o coração daquele que é esperando que você ame? Qual o objetivo de estar com outra pessoa se não para elevá-la e tornar-se melhor? Relacionamentos são feitos de parcerias, aceitação — de qualidades e defeitos.

Defeitos.

Fora chamado de defeituoso algumas vezes.

Pecador.

A pergunta que sempre revirava sua mente era se ainda iria para o inferno por gostar homens mesmo se não tivesse nenhuma intenção de dormir com um deles — não a menos que sua essência estivesse entregue por completo e sua emoção se atraísse, não seu corpo.

— Eu realmente não entendo qual o problema — Luís disse, encarando-o com o cenho franzido. — Então você não gosta de sexo.

— Eu não se sinto sexualmente atraído por alguém a menos que exista um vínculo emocional — Vicente corrigiu. — E, mesmo assim, não é garantido que vá ser uma coisa recorrente.

Era difícil se explicar em voz alta, e odiava que precisava fazê-lo. Não deveria ser obrigado a justificar-se para o mundo, dissecar sua intimidade e expor suas minúcias. Demissexualidade. Uma palavra grande para uma coisa não tão difícil de entender. Sabia que seria complicado mergulhar em qualquer relacionamento a longo prazo; sexo era parte fundamental de uma vida a dois para a maioria das pessoas, mas não conseguia negar a si mesmo e nem queria se forçar a ser algo que não era apenas para moldar-se a padrões esperados por outros.

Sabia que não seria julgado por Luís, sabia que naquele homem tinha um amigo com quem poderia confiar seus medos e inseguranças, embora nunca tenha sido o maior exemplo de expansividade. Ficava à cargo o outro expressar suas emoções — na maioria das vezes em textos escritos, guardados a sete chaves, escondidos dos olhos de todo e qualquer ser vivente. A Vicente sempre coube a função de enxergar o mundo, enxergar os outros, mas nunca enxergar a si mesmo.

Luís balançou a cabeça, concordando, aceitando a explicação, embora seu semblante ainda fosse confuso quando olhava para Vicente com seus olhos amendoados. A confusão não se devia ao teor da conversa, mas ao momento escolhido para tal.

Estavam atrasados para a tal festa na casa de Jorge — por que estavam indo era um mistério que não sabia resolver. Não queria estar perto do homem, em lugar nenhum ao redor. Sabia que Vicente também não queria ir, mas por algum motivo Laura insistira. A garota dos olhos de obsidiana não explicara seu motivo para tal, apenas pediu que fizesse isso por ela. E, considerando o tanto que a garota havia feito por eles, o mínimo que deviam a ela era fazer-lhe um favor sem perguntar suas motivações.

Contudo...

Os ponteiros na parede marcavam nove e meia, não estava tarde, a noite apenas começava. A disposição há muito havia abandonado ambos, que, com cumplicidade, encaravam o vídeo game. Em um acordo silencioso, sentaram-se na cama e escolheram deixar de lado o mundo lá fora.

Luís não estava muito certo do motivo para aquela conversa a essa altura, embora no fundo do seu peito, em um canto escuro, escondido, reprimido, uma fagulha tenha se acendido, a cor azul da esperança remexendo-se em seu peito.

Vicente tinha certeza que as palavras ditas haviam vencido seu prazo de validade e deviam ter conhecido o mundo eras atrás, mas era como um peso retirado de suas costas cansadas.

Como em um pacto, desligaram o celular, os dois, ignorando o mundo lá fora, prendendo-se na bolha particular que sempre foi relação deles. Permitiram-se voltar às origens daquela amizade peculiar que valia mais do que qualquer outra coisa sem suas vidas.

Valia o suficiente para que Vicente omitisse que em seu coração batia um amor tranquilo pelo homem de olhos amendoados, valia o suficiente para Luís deixasse de lado seus sentimentos confusos em relação àquele par de olhos esverdeados que enxergava o mundo de uma maneira única. Valia o suficiente para se mantivessem na vida um do outro sem arriscar arruinar uma relação que duraria o suficiente para que seus netos brincassem juntos — se um dia tivessem netos; estavam felizes em caminhar com seus cachorros e gatos no parque enquanto jogavam dominó.

Não havia paixão fervorosa que virasse cabeça de ninguém, havia amor. Amor pacato, amor preciso. Amor de uma vida inteira.

E isso valia mais do que tudo.

Então desligaram o telefone, abstiveram-se da festa e mergulharam no prazer que era a companhia um do outro.

E, com telefones desligados, não receberam as mensagens enviadas mais tarde naquela noite. Não tiveram notícias da tragédia que se instaurara. Horas mais tarde, quando permitiram que a tela do aparelho se acendesse, foi com o pânico instaurado em cada fibra de seus corpos que correram até a delegacia.

Obsidiana FraturadaOnde histórias criam vida. Descubra agora