Capítulo 6

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16 de março

— Cinco ponto trinta e sete. Quatro ponto seis. Zero ponto dois, meia, meia.

Luís arrastava preguiçosamente o lápis pelas linhas impressas da planilha, preenchendo os quadradinhos com os números cantados. O cheiro sequer o incomodava mais. Sabia que quando saísse de lá e o vento fresco batesse contra sua pele, as pessoas ao redor poderiam sentir o odor de peixe impregnado em suas roupas e cabelo, mas ele já estava tão acostumado que nem sentia mais.

— Sete ponto quatro, cinco. Seis ponto nove, zero. Zero ponto quatro, três, oito.

As paredes brancas sem adornos faziam a sala parecer muito maior do que realmente era. O zumbido constante do ar condicionado era o único som interferindo no absoluto silêncio quebrado apenas pela voz rouca que lia os números em um ritmo constante. Com o cotovelo apoiado sobre a mesa recoberta por pequenos azulejos brancos, ele mantinha os olhos focados nas páginas a serem preenchidas, sem nunca levantar o olhar na direção da voz. Havia permanecido assim por algumas horas agora, eficientemente anotando medidas enquanto tentava fingir que os números tinham outros significados.

Que horas são?

— Três ponto vinte e dois.

Quanto tempo de vida eu tenho sobrando?

— Dois ponto oito, quatro.

Qual a probabilidade de você algum dia se apaixonar por mim?

— Zero ponto um, três, oito.

É uma probabilidade ridiculamente baixa, lamentou consigo mesmo em sua brincadeira silenciosa. Esfregando os olhos, tentou ignorar a dor de cabeça causada pela ressaca. Sabia que tinha sido irresponsável se embebedar daquela forma, mas ultimamente estava desesperado por qualquer coisa que o fizesse sentir. Luís sequer se importava com o que sentiria. Qualquer coisa além da dor excruciante que partia seu peito em dois seria aceita de bom grado. Ele se sentia patético dessa forma, tanto criticou Helena por sua paixão obsessiva por Pedro e aqui ele estava. Com seu emocional completamente destruído, seu desempenho afundando, sua sanidade mental dando piruetas desengonçadas enquanto tentava se manter de pé na corda bamba que era sua autoconfiança naquele momento.

— Cinco ponto vinte e sete. Quatro ponto nove, meia. Zero ponto três, oito, três.

Luís anotou os números em sua letra perfeitamente redonda e esperou pelos próximos, encarando sem piscar as linhas que começavam a sair de foco e se transformar em um borrão de tinta preta. Quando a próxima sequência não veio e o silêncio engoliu todo o oxigênio da sala, o zumbido maldito do ar condicionado enlouquecendo o pouco que restava de sua sobriedade, ele se forçou a levantar a cabeça e encarar o par de olhos azuis na sua frente. Vicente estava encostado na pia atrás de si, os enormes braços cruzados na frente de seu peito, o olhar fixo em Luís. Não esboçava nenhum sorriso, não esboçava qualquer reação. Apenas ficou ali, parado, olhando. Esperando. Sentindo o nervosismo começar a tomar conta de si, Luís pigarreou.

— Quais os próximos? — perguntou, desviando o olhar para baixo em direção à grande régua de madeira suja por escamas soltas e gosmas derretidas dos peixes antes congelados.

Um par usado de luvas de vinil repousava displicentemente em cima de uma garrafa de PET cheia de formol. A balança de precisão não estava em um estado melhor e ele já estava cansado só de imaginar ter que limpar aquilo tudo antes de guardar. Se tinha uma parte do trabalho que ele não gostava era tentar tirar restos dos animais mortos dos equipamentos e bancadas do laboratório ao fim das medições. Olhou para as bandejas onde antes os espécimes estavam dispostos e as encontrou vazias. Os sacos que deveriam voltar para o congelador estavam perfeitamente selados e identificados, restando apenas os exemplares a serem colocados nos potes com formol.

Obsidiana FraturadaOnde histórias criam vida. Descubra agora