Prólogo

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28 de julho: depois da festa

O cômodo de paredes acinzentadas não era convidativo, e nem era para ser. A sala de interrogatório da delegacia caindo aos pedaços não fora projetada para ser confortável. A luz piscando fracamente no teto fazia com que Pedro se sentisse parte de um filme suspense policial de baixo orçamento. Tudo que faltava era um policial gordo segurando uma caixa de donuts entrar na sala e fazer algum comentário boçal. Por que será que policiais de filmes e livros eram sempre idiotas? Incapazes de ver o que estava diante de seus olhos.

Ele passou a mão pelo cabelo embaraçado que grudava em sua testa suada, o cheiro de maconha e cerveja ainda impregnado em sua roupa, em sua pele. Já tinha perdido a conta de quanto tempo estava ali, relatando cada detalhe que podia lembrar daquele dia lastimoso, daquela festa estúpida. Tudo que queria era que esse dia acabasse. Na verdade, queria que esse dia nunca tivesse existido, que tivesse tomado outras decisões, que tivesse seguido outros caminhos. Sabia que o problema havia começado antes, muito antes, e que fora uma série de decisões erradas que levou a esse ponto. Mas sabia também que não tinha nada que pudesse ser feito agora, então perder tempo divagando sobre o que poderia ter sido era inútil.

Pedro só queria que o dia acabasse. Queria a paz que nunca mereceu.

Com um suspiro, um revirar de olhos e um tom debochado muito distante do que o pertencia, deu início ao fim.

— É claro que todos querem saber o que aconteceu com a queridinha. Pobre Laura. Onde está Laura? Será que Laura precisa de alguma ajuda? Laura, Laura, Laura. Laura está abraçando o diabo a essa altura! Aquela vadia. A culpa é toda dela, ela teve o que mereceu. Laura está morta! Empurrei a vagabunda escada abaixo e fiquei ali, de pé, assistindo seu corpo cair e rolar pelos degraus. Ouvindo seus gritos. — Pedro fez uma pausa e engoliu seco. Apoiou os cotovelos na fria mesa de metal e levou o queixo às mãos. — Ouvi o exato momento em que o corpo dela atingiu o chão. O barulho da cabeça dela espatifando no chão. Pah! E ela ficou lá, caída. Olhando para o nada. Uma poça de sangue se formando ao redor dos seus cabelos. — Com uma pausa, ele suspirou. — Mas que merda, ? Até a morte daquela vadia foi poética.

Ronaldo não tinha certeza se anotava o que estava ouvindo ou se só continuava encarando o rapaz sem silêncio. Ele se remexia no lugar, xingando mentalmente a cadeira desconfortável em que estava sentado. Aquela porcaria já devia ter sido trocada há anos, mas sempre era empurrado com a barriga. O ar condicionado quebrado que fazia o cômodo se tornar uma sauna não ajudava em nada o seu humor. Era uma sala de interrogatório, não uma câmara de tortura em uma instalação militar, não havia a menor necessidade para aquilo. Estava trabalhando há quase quarenta horas seguidas e tudo que queria era ir para casa, tomar uma cerveja e dormir. Talvez assistir um pornô antes de ir para cama. Maria Luíza não estaria lá para aporrinhar suas ideias mesmo, finalmente algo de bom saiu daquela situação. Ela fora embora, sem nem deixar um bilhete, nada. Simplesmente fez as malas e partiu. Ronaldo chegou do trabalho um dia e deu de cara com a casa vazia, o armário vazio, a garagem vazia. Tentou ligar, mandou mensagens, e nada de ela responder. Até que depois de alguns dias perdeu a paciência e mandou rastrear o telefone dela. Estava em um endereço em Botafogo, um prédio na Voluntários da Pátria. Ele largou o carro perto do metrô e esperou. Não era como se pudesse adivinhar em qual apartamento ela estaria, então esperou. Ela teria que aparecer alguma hora. E apareceu.

Pedro encarava o detetive sentado na sua frente. Tudo em sua expressão deixava claro que Ronaldo daria qualquer coisa para não estar ali. Ele também não queria estar ali, então concordavam nisso. Não que tivesse muito que algum dos dois pudesse fazer de qualquer forma, então apenas continuou encarando o homem. A blusa preta estava manchada de alguma coisa perto do ombro direito e Pedro se perguntou o que seria. O homem arrastou uma das mãos pela barba ridiculamente grande e escovou os fios negros com as unhas malfeitas.

— Algo mais? — o homem perguntou, a caneta esferográfica preta rodando entre os dedos da mão direita despretensiosamente, como se não houvesse nada no mundo capaz de deixá-lo mais entediado do que estar ali.

Pedro pensou por um momento em tudo o que aconteceu, em como seu dia começou, em como nunca, em um milhão de anos, pensaria que terminaria em uma delegacia, depondo sobre o assassinato de Laura. Mas a vida tem dessas coisas e ele já estava ali agora. Lembrou-se dos cabelos esvoaçantes da menina, lembrou-se do dia exato em que ela os cortou e apareceu na faculdade com as madeixas negras logo abaixo do queixo, os cachos emoldurando seu rosto. Lembrou dos seus olhos, escuros como obsidiana, sempre com um brilho desafiador de quem é dona e senhora de si e não obedece a nada nem ninguém. Lembrou de seu sorriso, aquele sorriso provocador, sempre acompanhado por uma resposta afiada que desestabilizava os de coração mais fraco.

— Algo mais, Pedro? — Ronaldo insistiu, a frustração cortante em sua voz agora fazendo-se mais clara.

Pedro suspirou, recostando na cadeira. Os braços cruzados ao redor do peito, olhar afiado preso ao rosto do outro.

— Eu arranquei o sorriso do rosto daquela vagabunda.

Obsidiana FraturadaOnde histórias criam vida. Descubra agora