Capítulo 21

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24 de junho

Viver é diferente de habitar um corpo. Existir em um vácuo em nada se compara às nuances de uma alma, com seus sofrimentos e desesperos, noites em claro com lágrimas borrando o travesseiro em uma distorção sem sentido.

Sobreviver, dia após dia, hora após hora, é uma tarefa árdua o suficiente para que o luxo de desmembrar emoções tenha espaço em meio a uma vida castigada. Enfrentar o vazio silencioso que ecoa em sua magnitude é, por vezes, mais fácil do que abrir a caixa, aquela caixa, a caixa de Pandora deixada no canto da sala, abandonada à sorte, contendo todo o mal do mundo. Do seu mundo.

Caixas fechadas não causam estragos. Emoções envelopadas não precisam ser encaradas. Bocas lacradas não dizem palavras desagradáveis aos ouvidos de todos, todos tolos ausentes, inocentes, ingênuos, alheios ao sofrimento.

Pulsos cortados sangram uma vez só.

E então, não mais caixa de Pandora. Não mais sentimentos envelopados. Não mais vazios ocos em um corpo inabitado.

Não mais nada.

A fina lâmina girava entre os dedos trêmulos de Bianca. Sentada no chão do banheiro, o azulejo frio tocando suas coxas nuas. O líquido quente e salgado escorria por seus olhos, invadindo suas bochechas, gotejando em seu colo ao finalizar sua jornada caindo por seu queixo.

Aos seus pés, o celular a encarava zombeteira. A tela escura do aparelho a desafiando. Zombando. Lendo em voz alta mensagens recebidas. Cobranças que não podia satisfazer. Expectativas que insistia em quebrar. O que era pior, as vozes constantes exigindo dela coisas que não podia oferecer, ou o silêncio opressor de abandono ecoando em sua mente?

Talvez Helena estivesse certa. Talvez estivesse mesmo mergulhada em drama nos últimos meses. Era verdade que a garota não sabia do ocorrido, mas fazia mesmo diferença? Talvez apenas fosse fraca demais para lidar com sua própria vida. Com suas próprias escolhas, com seu próprio caminho.

Mas não foi sua escolha, foi?

Não.

Ou foi?

Deveria ter sabido melhor que isso, não era verdade?

Conhecia Jorge o suficiente, fora estúpida em aceitar aquela bebida.

Estúpida.

Sua estupidez havia lhe causado aqui. Havia lhe custado tudo.

Talvez devesse ter aceitado sair com o homem, uma vez que fosse. Apenas para aplacar sua vontade, acalmar seus ânimos, dar a ele a sensação de vitória. E, então, talvez, ele não precisasse ter tomado à força o que queria.

Talvez...

Um soluço escapou de sua garganta quando pressionou a lâmina afiada contra sua pele. A dor causada pelo corte em nada se equiparou à devastação emocional que acometia seu corpo.

Mais fundo, sua mente gritada, sádica. Mais fundo e tudo isso vai acabar.

Bianca não queria que acabasse.

Queria que a dor acabasse, que o torpor abandonasse seu corpo, que voltasse a sentir alguma coisa, qualquer coisa que não a vontade de deixar de existir.

Como uma poção mágica à espera do último ingrediente secreto, o celular vibrou aos seus pés quando uma gota vermelha atingiu a tela. Os números embaçados acenderam e piscaram e gritaram. Anunciaram e acusaram sua hora de partir. De recompor-se, de fazer-se apresentável.

***

Vinte e dois graus em uma tarde de sol tímido escondido por detrás de nuvens cinzentas talvez justificassem o moletom que usava quando cruzou a portaria do prédio comercial no Centro da Cidade. O elevador apitou, anunciando o sexto andar, abrindo suas portas metálicas e empurrando-a para o corredor vazio. Mecanicamente, entrou na pequena sala de espera e assinou a guia do plano de saúde.

Obsidiana FraturadaOnde histórias criam vida. Descubra agora