20 de março
A garganta ardia. Seu estômago se contorcia por causa dos refluxos violentos, cada um trazendo consigo a dor e a vergonha. A bile ácida queimava as paredes de seu esôfago já muito maltratado pelos dedos sendo brutalmente enfiados garganta abaixo. Lágrimas escorriam por sua face, trazendo consigo fios negros de rímel borrado. Estava exausta, não sabia se chorava pela dor da violação auto infligida ou pelo desgaste emocional que vinha de bônus. Não aguentava mais, mas não conseguia parar. Era a segunda vez naquele dia e sequer tinha chegado a hora do almoço.
Deu descarga e viu sua vergonha e humilhação serem levadas esgoto abaixo, afastando de si a evidência que há muito havia deixado de ser uma ferramenta e se tornado sua obsessão. Colocou-se de pé, os joelhos avermelhados sendo descolados do chão recém-limpo, ainda úmido. Abriu a porta e caminhou em silêncio até a pia. Era a pior parte. Encarar seu reflexo débil no espelho era a pior parte. Encarar seus próprios olhos e ver o opaco esverdeado onde um dia habitaram esmeraldas apenas fazia com que tivesse cada vez mais raiva de si mesma. Da sua incapacidade de se manter sob controle. Tossindo, ela enxaguou a boca com a água exageradamente tratada com cloro, o gosto amargo grudando em sua língua.
Mecanicamente, retirou a pequena nécessaire da bolsa, arrancou um lenço umedecido da caixinha e pôs-se a limpar a maquiagem borrada. Sequer prestava atenção no que estava fazendo, as mãos automaticamente seguindo a rotina já tão conhecida.O silêncio julgador foi quebrado quando a porta do banheiro se abriu e duas meninas entraram, falando alto, palavras indistinguíveis para os ouvidos contrariados de Helena. Uma das garotas se dirigiu à pequena cabine, não a mesma em que estava alguns minutos atrás, que ainda guardava o cheiro azedo de comida parcialmente digerida. A outra parou ao seu lado, de frente para o espelho, e começou a desembaraçar com os dedos hábeis os fios tingidos de um vermelho sangue. Helena observou de canto de olho enquanto a garota arrumava com o dedo o lápis de olho borrado pelo calor.
O som da descarga e do toque do telefone da garota ruiva vieram ao mesmo tempo, agressivamente altos. A ruiva indicou para a amiga, com a mão, que esperaria lá fora, enquanto se retirava com sua voz manhosa sendo dirigida a alguém do outro lado da linha.
Helena perdeu-se em si mesma naquele momento. Seus olhos vagaram pelo teto pintado em branco, pelos azulejos esverdeados dos quais nunca gostou. Era o tom errado, ela se sentia doente só de olhar. A pia grande em granito não fazia um trabalho melhor para adornar o ambiente e o espelho, o maldito espelho, ria da sua instabilidade, a mulher no reflexo contando uma história diferente daquela que ela lembrava ser a sua própria.— Ei. — Ouviu, sendo despertada de seu torpor por uma mão delicadamente pousando em seu ombro. — Você está bem?
Helena virou em direção à voz e quis rir. Não sabia se era por desespero, se era porque estava perdendo a cabeça ou se porque a situação era tão trágica que merecia uma dose de risadas desajustadas. Dentre todas as pessoas da faculdade, é claro que seria Laura.
Aquela mulher estava em todo lugar, como uma maldita assombração.
— Ótima —respondeu com um sorriso gelado, voltando a encarar o reflexo patético no espelho enquanto as mãos terminavam de arrumar o cabelo.
— Tem certeza? — Laura insistiu. — Você não parece muito bem.
— E isso é da sua conta por que...? — Helena sibilou, encarando a garota fixamente nos olhos escuros que pareciam abrigar a chave para o fim do mundo.
— Tem razão, não é — ela reconheceu, levantando as duas mãos em sinal de rendição. — Me desculpe e tenha um bom dia — disse, virando-se em direção à saída.
Helena não soube bem, naquele momento, o que descarrilou a perda do pouco controle que lhe restava. Talvez a educação britânica da garota, talvez o fato de ela genuinamente parecer se se importar. Talvez porque estivesse cansada de ver Pedro flertar com Laura de todas as formas possíveis e ser dispensado em todas elas.
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Obsidiana Fraturada
General FictionObsessão. É difícil saber de onde vem, como começa, e em um ponto da história é difícil até de lembrar qual a causa inicial. Algumas pessoas têm um magnetismo próprio, alguma coisa que marca sua alma e faz com que automaticamente se tornem cent...