10 de Julho
Não fazia tanto frio. Ficou feliz por ter levado a tal saia e ter sido capaz de dispensar a meia-calça, exatamente como ele gostava. Olhando-se no espelho do carro de Bianca, ela admirava seu próprio rosto, sentindo falta do vermelho em seus lábios, achando-se pálida. Forçando um sorriso no rosto, repetiu a si mesma que estava tudo bem.
Era cedo de manhã e o estacionamento do campus não estava tão cheio quanto ficaria nas próximas horas, então Bianca não teve problema em estacionar. Quando ela desligou o carro e soltou o cinto de segurança, suspirou fundo, olhando para Helena pela primeira vez desde que entraram no carro para aquela viagem curta e silenciosa.
— Você está bem? — perguntou, ao mesmo tempo preocupada e já irritada com a resposta que receberia. Era Pedro, tinha certeza. E ela estava cansada daquele garoto, vinha se cansando dele ao longo dos anos, mas o encontro dos dois na noite de sábado tinha sido a gota d'água. Ficava impressionada com a forma como o mundo da amiga girava em torno de uma só pessoa, pessoa essa que não fazia questão nenhuma de disfarçar sua indiferença.
Teve vontade de gritar com ela, chacoalhar seus ombros cada vez mais finos, fazer com que Helena a encarasse com aqueles olhos verdes que pouco a pouco perdiam seu brilho. Quis gritar, dizer que parasse de se afundar dessa forma, que parasse de permitir que o fundo do poço a atraísse com tanta força, que virasse as costas e deixasse de lado o que tanto a fazia mal. Quis gritar, dizer que um monstro não deixa de ser um monstro só porque te afaga à noite, que ela precisava enxergar Pedro pelo que era e não pela fantasia que criara em sua cabeça.
Ele não era seu príncipe encantado, não iria resgatá-la montado em um cavalo branco e jurar seu amor e lealdade a ela por toda a eternidade. Aquilo jamais aconteceria. A raiva que borbulhava sob a pele de Bianca a assustou. Nunca foi dada a rompantes e estava a ponto de ter um, ali, olhando nos olhos doídos daquela que deveria ser sua melhor amiga. Quis gritar com Helena e exigir que ela enxergasse quem verdadeiramente se importava com ela, quem realmente sempre estivera ao seu lado, e a constatação disso a assustou.
Bianca, sempre tão dedicada e disposta a mover o mundo pela outra, viu-se pronta para virar as costas para ela. Quando isso tinha acontecido? Quando a devoção foi quebrada, substituída pela realidade bruta de que aquela amizade, amizade que Bianca por muito tempo quis que fosse mais, não era como antes? Ela não se sentia como antes. Naquele ponto, sequer sabia o que sentir significava. Os únicos sentimentos que conhecia eram dor, medo e raiva.
— Tudo ótimo — Helena respondeu em um tom falso já conhecido pela outra, que não se incomodou em insistir. Saiu do carro e esperou que Helena fizesse o mesmo para travar a porta. Sentiu, surpresa, quando a outra tomou seu braço, entrelaçando-o ao seu e lhe sorriu candidamente. — Senti sua falta.
E ali estava, o sorriso carinhoso, os olhos reluzentes, a aura contagiante de Helena à qual Bianca havia sido submetida por tanto tempo. Seu efeito, contudo, não era mais tão intenso e Bianca podia facilmente enxergar a dor por detrás da aura imponente da mulher. Era curioso ver que Helena não estava mais dando as cartas.
Permitiu-se sorrir de volta e desfrutar do resquício de normalidade, fingir que tudo era como sempre fora e que sua vida não estava de cabeça para baixo. Tinham alguns minutos antes da aula começar e Helena as guiou até ao Diretório Acadêmico, a saleta no primeiro andar onde passaram tantas tardes. Sentiu o celular vibrar e apanhou o aparelho do bolso, desbloqueando a tela.
Helena tentou espiar pelo canto de olho o que havia roubado a atenção de Bianca, mas se distraiu ao ver Luís. O homem, de pé em um canto do corredor, conversava animadamente com Vicente. Não se falavam há meses, nada além do que cumprimentos forçadamente educados e olhares desviados. Enquanto ouvia os dedos agitados da amiga batendo da tela rachada do celular, encarou a dupla que era um mistério para ela.
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Obsidiana Fraturada
Fiction généraleObsessão. É difícil saber de onde vem, como começa, e em um ponto da história é difícil até de lembrar qual a causa inicial. Algumas pessoas têm um magnetismo próprio, alguma coisa que marca sua alma e faz com que automaticamente se tornem cent...