Entre a escuridão e a aurora (1)

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Já era noite adentro na região do cinzal, quase onde a terra começava a congelar e não era possível cultivar nada. Nem mesmo com um feiticeiro dedicado conseguia se fazer crescer uma boa horta. Como em qualquer lugar tão adentro da região do cinzal Porto negro tinha um motivo bastante específico e prático para existir. Em meio a desolação daquele local não valia a pena viver. Importar a comida de regiões mais férteis e iluminadas era necessário. A vila e o pequeno porto só existiam porque a região continha ricas minas de termalina e cobre. Todos que viviam lá, vieram por causa do trabalho. Ou quase todos.

Se existia alguém que não tinha um propósito definido naquele lugar, era Haltr.

Quando não estava nas minas dando duro até ficar com as mãos ainda mais calejadas, estava no porto observando os barcos irem e virem. Imaginando os tipos diferentes de vida que poderiam existir em reinos distantes.

-Garoto, saía daí de cima já, se não vou tacar uma pedra em você! E você sabe que eu sou mirolho. O último bêbado que subiu ai depois de um pileque ainda não conseguiu tirar a pedra de dentro do ouvido. - disse uma voz gutural de forma ríspida.

Haltr olhou para baixo, e seu olhar se encontrou com o de um homem corpulento, com um bigode grosso castanho claro. Ele tinha os ombros largos e as mãos grossas e ásperas, e uma ampla cabeça calva. Mesmo que estivesse bem vestido e limpo no momento, era possível ver claramente que ele tinha sido um minerador no passado.

-Mas que droga Halgen, porque você é tão chato? Desde que abriu taverna do outro lado da vila parece que virou o dono da cidade, sai mandando em todo mundo.

-Eu lasquei esse meu couro duro durante anos pra montar aquela taverna. Anos juntando as malditas moedas. E estou te fazendo um favor moleque. Se fosse um desses cavaleiros empoados a te ver aí em cima do mastro das divindades, ia te dar umas chicotadas só pra matar o tédio.

De má vontade Haltr suspirou e começou a descer o mastro. Era um enorme tronco grosso de madeira, onde no topo eram esculpidas as faces das divindades. Após uma longa discussão sobre que igreja erguer ali, o prefeito que também era o dono das minas chegou a uma decisão. Seria injusto erguer uma igreja para um único deus. Então ergueram um mastro com a face de todos eles. Assim todos podiam fazer suas preces sem nenhum favoritismo. O fato de o código dos reinos do Entardecer ditava que todas as igrejas deviam ser erguidas e mantidas pelos governantes da cidade, e que arranjar um tremendo pedaço de madeira e esculpir rusticamente era mais barato era, claro, uma grande coincidência.

-Eu só gosto da vista... - confessou Haltr - às vezes os faróis dos navios parecem... ah deixa pra lá - dizia desistindo de completar a frase. A verdade era que gostava de ficar ali em cima. Quando via os faróis dos navios surgindo no horizonte, gostava de fingir que podia ser o sol nascendo. Sonhava com o sol. Não se lembrava bem dele. Provavelmente imaginava ele errado. Mas ainda sim era fascinado pela ideia de vê-lo. Porto negro estava tão adentro do cinzal, que o sol ficava abaixo da linha do horizonte. O céu era sempre de um azul escuro, quase negro.

-Escuta, teu pai fez uma grande besteira de te trazer pra cá e depois bater as botas...merda, o que eu to querendo dizer é... você está colocando umas ideias na cabeça... mas querer não é poder. Eu já tive a sua idade e...

-Faz quanto tempo isso? - dizia em tom ligeiramente irritado. Não gostava quando mencionavam seu pai. Muito menos sua morte. Era complicado. Haltr as vezes sentia sua falta com uma força avassaladora. As vezes, se ressentia pensando por que o trouxe para aquele lugar. Ali não havia sol algum. E Haltr sonhava em vê-lo, andar pela florestas, onde diziam, tudo era verde e vivo. Na verdade sair daquele buraco no chão seria um grande começo.

Entre a escuridão e a auroraOnde histórias criam vida. Descubra agora