Com uma mão na frente e outra atrás

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— Que absurdo, bisa!
— Ponha absurdo nisso! É um verdadeiro contrassenso o número de aproveitadores deste mundo. Coisa para a gente se indignar. Meu sangue ferve de raiva desse tipo de gente. Ninguém respeita mais ninguém. É o fim do mundo. Onde já se viu...
— E o que aconteceu com o irmão do Pedro Malassartes? - Era isso o que eu desejava saber.
No primeiro dia de trabalho, o fazendeiro deu a seguinte ordem:
— Vá carpir o cafezal e leve junto esta minha cadela. Só volte quando ela voltar!
João não gostou da história. De cara, percebeu que era uma das tramoias do fazendeiro. Mas, como precisava muito do emprego, acatou a ordem dada e pôs-se a caminho.
Chegando ao cafezal, a cadela acomodou-se à sombra de um pé de café e lá ficou deitada. Na hora do almoço, com o sol a pino, João, cujo estômago já estava colado às costas, olhou para a cadela que dormia tranquila, como se não sentisse fome. Ao fim da tarde, a cadela continuava caída no sono. Só ao anoitecer a bicha se levantou, espreguiçou-se toda e seguiu para casa. Lá, o fazendeiro mandou servir ao João apenas uma pequena concha de sopa rala, que mal era suficiente para encher-lhe as covas dos dentes, embora tivesse lambido o prato.
No outro dia, na semana e no mês inteiro foi a mesma coisa. O pobre do rapaz já não aguentava trabalhar muito e comer pouco. Resistia apenas porque sabia quanto sua família precisava daquele seu salário para comprar comida.
O fazendeiro só ficava olhando até quando o rapaz aguentaria. Ninguém até então havia suportado tanto. Não seria aquele cabloco mirrado que iria receber por seu trabalho. Outros, bem mais fortes, desistiram antes. Isso sem contar aqueles que se zangaram e, além de não receberem, deixaram o couro nas costas. Assim, foi durante um mês e vinte e sete dias. Faltando três dias para completar sessenta e receber seu primeiro salário, o coitado do João caiu desmaiado. Quando voltou a si, o fazendeiro, doido para tirar-lhe uma tira de couro das costas, perguntou-lhe: — Está zangado comigo?
— Não — respondeu, para não ficar sem seu couro.
— De jeito nenhum.
— Então, pegue a enxada e vá carpir o cafezal!
O rapaz tentou. Mas deu dois passos e caiu desmaiado de novo. Acordou com a esposa do fazendeiro jogando-lhe uma caneca d'água fria no rosto e comentando com o marido:
— Esse infeliz não aguenta nem com as próprias pernas!
— Está teimando para receber. Afrontando as minhas leis. Não vai ser o primeiro a sair daqui com dinheiro no bolso e com o lombo sem eu lhe tirar a tira das costas.
— Pelo contrato, ele pode ir embora sem perder a tira porque não disse estar zangado.
— Não está, mas se aborrece logo — retrucou o fazendeiro, amolando a faca na pedra e chutando o rapaz.
— Ai! Isso é demais!
— Não disse que se zangava? Pois se zangou!
— Corte a tira do meu lombo, porque vou embora!
— Você se enraiveceu, né?
— Se fico, nem terei couro pra ser tirado.
O malvado do fazendeiro não teve dúvida: rasgou as costas do rapaz e tirou a tira.
— E ainda vai sair com uma mão na frente e outra atrás!
— Eu não devia ter acatado as condições do contrato.
— E por que acatou?
— Precisava de trabalho.
— Vá, seu trouxa! Você já trabalhou. Adiantou em muito a limpeza do meu cafezal.
Assim e sem vintém no bolso, o João voltou para casa com uma mão na frente e outra atrás.

Aventuras de Pedro MalasartesOnde histórias criam vida. Descubra agora