O urubu que falava

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— Verdade, bisa?
— Claro quem sim, menino. Foi o próprio Pedro quem me contou tudo.
— E depois disso o que aconteceu? — eu perguntava, cheio de curiosidade.
Então ela dizia que, dias após o enterro do pai, Pedro Malasartes comunicou à mãe seu desejo de partir. Alegou estar grande e o mundo ser maior do que as poucas terras que conhecia. Não era pedra para ficar sempre no mesmo lugar. Sua vocação era andar mundo afora. Precisava cumprir seu destino.
A mãe o aconselhou a casar, ter filho, família e lar.
Ele respondeu que longe dali encontraria a moça com quem iria casar. Deixava todo o dinheiro, ganho da viúva do fazendeiro perverso, para a mãe comprar um bom sítio e tocar a vida com o João.
Ela ainda insistiu para que ele.levasse alguma coisa. Não deixasse tudo. Não saísse com uma mão na frente e outra atrás.
Diante da persistência da mãe, Pedro foi ao fundo do quintal, pegou uma folha de porta lá jogada e disse ser tudo o que queria levar. Então deu um pulo até a fazenda mais próxima, comprou um bezerro e fez um belo churrasco de despedida. No melhor da festa, ele e seu irmão, vendo a velha abocanhar os melhores pedaços de carne, começaram a rir, lembrando o tempo em que ela, para devorar a melhor parte, mandava os dois comerem os nervos atrás da porta.
Ainda dormiu aquela noite em casa. Mas, ao amanhecer, Pedro abraçou sua mãe e o irmão, pôs a folha de porta nas costas e seguiu viagem.
No caminho, encontrou sete urubus devorando um animal morto. Indignado, por julgar falta de respeito com o cadáver do bicho, atirou a porta sobre eles para dar fim ao banquete. Seis bateram asas e ganharam as alturas. Um ficou com a asa quebrada. Arrependido de seu feito e com propósito de curar a ave, Pedro pegou o urubu mais sua porta e seguiu viagem.
Depois da curva de um brejo seco, parou em frente de uma casa que soltava fumaça pela chaminé do fogão. O cheiro do assado aumentou-lhe a fome. Então, resolveu bater à porta e pedir comida. A mulher, pensando ser o homem com quem traía o marido, veio atendê-lo toda faceira. Mas, ao deparar com Pedro, fechou a cara e disse que não dava comida a vagabundo.
Mal ela virou as costas, Malasartes subiu ao telhado. Pelos vãos das telhas, pôs-se a olhar o que cozinhavam e onde guardavam os doces e salgados, enquanto ouvia a conversa da mulher com a criada. Ao anoitecer, viu o marido chegar de surpresa de sua viagem e a esposa, cinicamente, dizer que não o esperava e, por isso, só havia feito uma sopa rala. O homem sentou-se à mesa e mandou servir a comida. Quando levou a primeira colherada à boca, Pedro desceu do telhado e bateu à porta.
Ao vê-lo, a mulher correu a despachá-lo, mas o marido, enciumado, coçou sua barba ruiva e gritou lá da mesa:
— Quem vem a minha casa sem ser convidado?
— É um vagabundo pedindo comida — respondeu a esposa.
— Mande-o entrar que eu quero ver! — decretou o outro, muito desconfiado.
Ao ver o Pedro Malasartes com o urubu embaixo do braço, o homem riu e ironizou:
— Se você tem fome, por que não mata esse urubu e come?
— Isso não posso fazer, porque ele é um bicho advinhador — rebatou o Pedro Malasartes e, de imediato, apertou a asa machucada do urubu, obrigando-o a crocitar. — Está vendo? Ele me fala até sem eu perguntar.
— Fala o quê?
— Desculpe-me pela sinceridade, mas ele disse que o senhor é um bobo.
— Bobo! Por que eu seria bobo?
— Porque toma essa sopa rala, tendo um belo pernil assado naquele armário.
— Adivinhou mesmo! — disfarçou a mulher, sem outra saída.
— Que conversa é essa? — indagou desconcertado o marido.
— Queria lhe fazer uma surpresa, querido. Mas esse bicho estragou tudo — lamentou a fingida, indo retirar o pernil assado do armário e colocando-o sobre a mesa.
Novamente, Pedro apertou a asa machucada do urubu.
— Cale a boca, intrometido! — ordenou, batendo na cabeça do animal.
— O que ele disse agora?
— Que o senhor deveria me convidar para o jantar, que ele vai adivinhar muito mais coisas.
— Então, sente-se e se sirva! Quero ver o que esse bicho tem para me dizer.
Pedro voltou a apertar a asa do urubu.
— Agora disse que há peru assado naquele outro lado do armário.
— Puxa vida! Esse urubu está estragando todas as minhas surpresas — disse, num sussuro, a mulher, indo buscar o peru.
Temendo que o urubu revelasse sua traição, a mulher fez muitas propostas de compra do animal. Mas o Pedro rejeitou todas, enquanto comeu e bebeu do bom e do melhor naquela noite.
Só ao fim do jantar, por bom preço, ele fechou negócio. Embolsou o dinheiro, pôs sua porta nas costas foi embora satisfeito da vida. Pelo que havia feito não se sentia nem um pouco culpado, pois um casal cuja mulher trai o marido e este manda outra pessoa comer urubu para matar a fome merece ser tapeado.
Quanto ao urubu, como o Pedro Malasartes previa, ficou recebendo bons tratos, enquanto o homem tentava decodificar seus grunhidos.
— E daí, bisa?
— Daí o quê, menino?
— Que aconteceu com o urubu?
— Quando ficou curado, bateu asas e voou ao encontro de seus companheiros.
— Verdade, bisa?
— Pois é claro! Foi o próprio Pedro quem me contou.
— E depois o que aconteceu com o Pedro?
— Agora chega! Está anoitecendo e o vento da tarde desmanchou todo o meu penteado. Preciso me pentear para o jantar.
— Amanhã a senhora conta mais?
— Conto.

Aventuras de Pedro MalasartesOnde histórias criam vida. Descubra agora