Pedro Malasartes no inferno

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— Assim prometeu e fez. Porque, apesar de tudo, o Pedro sempre foi homem de palavra. Não ia afirmar uma coisa ao seu padrinho protetor se não fosse cumprir.
Desse jeito, a bisa engatava uma história na outra e narrava como foi a estada do Pedro Malasartes no inferno.
Quando ele lá chegou, houve o maior rebuliço entre os diabos é as almas que pagam seus pecados ao lado de Satanás. O grande porteiro do inferno, mesmo acostumado com seu trabalho, executado durante séculos e séculos, coçou seus enormes chifres sem saber o que fazer, pois nunca vira ninguém pedir para entrar no inferno. Muito menos gente viva. Diante de sua indecisão e da persistência do visitante,  o tal grande porteiro só teve a alternativa de colocar todas as trancas nas portas do inferno e ir buscar instrução com seu superior. Mas o Malasartes não esperou toda essa burocracia. Decidido como estava, enfiou a boca em uma fresta, por onde vazava fumaça das fervuras dos tachos ardentes do inferno, e, desafiador, gritou bem alto lá para dentro:
— Diabo do inferno, você não é de nada! Abra essa porta, que vou lhe dar umas boas chicotadas!
Os gritos ecoaram na imensidão das trevas e acordaram o diabo, que dormia, completamente sossegado, sobre seu longo rabo, pois sempre tivera o inferno sob seu mais completo controle.
— O que está acontecendo aqui? — disse, entre bocejos, o rei das trevas.
Atropeladamente, o grande porteiro explicou-lhe tudo que acontecia. O amaldiçoado coçou muito seus cornos e concluiu que, se deixasse Pedro entrar, ele era bem capaz de revolucionar todo seu reino e sua gente "da pesada"; por outro lado, se interditasse a entrada, o Pedro ia desmoralizá -lo quando voltasse à terra. Em meio a essa indecisão, o diabo convocou seus chifrudos conselheiros. Eles vieram até o salão de assembleia, sentaram-se em suas enormes cadeiras de fogo e não fizeram nada além de também coçarem suas guampas diante do problema. Durante as horas em que a assembleia dos capetas esteve reunida, o Pedro continuou esperando e desafiando o diabo lá da porta. Então, já bastante desmoralizado, este ainda pesou os prós e os contras e decidiu deixar o Malasartes entrar.
O porteiro foi abrir a porta. O Pedro entrou por aquelas imensas e medonhas profundezas. As crateras escuras, úmidas e laterais do vasto corredor de piso farpado exalavam insuportáveis bafos de enxofre misturado com fumaça e vapores vindos dos enormes tachos onde eram fritos os pecadores. Era tão medonho o cenário, que, não fosse a palavra dada a São Pedro, o Pedro era capaz de desistir de seu intento. Mas, com a firmeza desse compromisso, corajosamente ele seguiu em frente. Muitos demônios, curiosos para ver o homem que desafiara o rei das trevas, acabaram distraindo-se e queimando-se com o óleo fervente dos tachos e caldeirões. O inferno tornou-se o caos, com todo o mundo largando suas obrigações e penitências para ver o famoso Pedro Malasartes. Isso sem falar do barulho ensurdecedor vindo das grossas correntes que os penitentes tinham atadas aos pés.
Lá no fim do corredor estava o Satanás sentado no próprio rabo, sobre um trono de labaredas, segurando firme seu cetro de três pontas. Era mais feio do que o Pedro supunha e havia ouvido falar a vida inteira. Tinha pés de pato e pele de rato com couro de cobra, e por seu corpo passeavam grandes aranhas negras.
— O que você quer aqui, Malasartes? — perguntou o tinhoso.
— Prometi ao meu padrinho que viria salvar umas almas e vou cumprir a minha promessa.
— Deixe de bobagem, Pedro!
— Não me chame de Pedro, que isso é nome de santo e não fica bem na sua boca fedorenta.
O diabo cuspiu fogo de ódio.
— Não adianta ficar brabo! Sua zanga não me põe medo!
— Vou lhe dar uma chance. Vá embora é aproveite que ainda não chegou sua hora.
— Chance eu tenho do meu santo padrinho e não me interessa a sua.
— Então, vamos decidir sua sorte pelo jogo. Faz tempo que não tenho um jogador a minha altura.
— Jogo é coisa que já não me interessa. Mas eu topo.
O diabo mandou seu assistente trazer as cartas do baralho e, enquanto esperava, ditou as regras:
— Se você perder o jogo, vai, mesmo vivo, ser fervido no caldeirão com molho de enxofre, soda cáustica e pimenta.
— Mas, se eu ganhar, liberto do inferno todas as almas que a minha vista alcançar.
— Combinado — concordou o diabo, recebendo as cartas de seu assistente.
Sentaram-se à mesa. O chifrudo embaralhou as cartas, fez o monte e mandou o adversário cortar. Pedindo proteção à Deus, o Pedro cortou. O outro refez o monte e distribuiu as cartas. Preocupados, correram olhar sobre suas cartas. O diabo sorriu contente.
— Eu nem precisava desta sorte toda!
O Pedro não pôde dizer o mesmo de seu destino.
— Está preocupado, Malasartes?
— Mais vale um pouco com Deus do que muito com o diabo — respondeu com toda sua fé, pois as cartas não o favoreciam.
Começou o jogo. Embora estivesse com as melhores cartas, o chifrudo fazia de tudo para passar a perna no Pedro, que jogava convicto de sua fé. De repente o diabo fez péssima jogada e o Pedro ganhou. Vitorioso, mandou libertar todas as almas que pôde ver de onde estava sentado.
O diabo não se deu por vencido e propôs nova partida, nas mesmas condições. Agora, foi o Malasartes quem deu as cartas. Tirou as melhores e, de saída, ganhou o jogo. Muito mais almas aproximaram-se, para serem vistas por ele é ficarem libertas do inferno.
O diabo encapetou-se de vez. Coçava os chifres, batia a cabeça na parede e soltava fogo pelas ventas, pelos ouvidos e pela boca, de onde exalava um mau hálito de além-túmulo. Além disso, desesperado, desembestou a comer aranhas e escorpiões como se fossem salgadinhos. Mesmo assim, quis jogar mais uma rodada, enquanto o inferno ia ficando vazio de almas. Também a terceira partida o Pedro ganhou. Muito mais almas foram salvas.
Derrotado e desolado por ver o inferno quase vazio, o chifrudo mandou botar o Pedro Malasartes porta afora.

Aventuras de Pedro MalasartesOnde histórias criam vida. Descubra agora