A alma penada da casa assombrada

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— Agora estou cansada! — disse, bocejando, a bisa.
— Cansada de quê, bisinha?
— Contei uma história atrás da outra.
— Ah, bisinha! Conte mais um pouco.
— Não me venha com esse agrado lambido. Olhe como estou: o vento desarrumou todo o meu cabelo! Passei a tarde inteira aqui na varanda, emendando uma história na outra.
— A senhora está linda, bisinha. Quando começa a anoitecer, seus cabelos vão ficando parecidos com prata.
— Você acha? — perguntava ela, cheia de vaidade.
— Acho, sim, minha bisinha lindinha.
Pronto! Ela recomeçava a contar, lembrando que o anoitecer de um inverno apanhou o Pedro caminhando por uma estrada deserta quando ele ainda estava longe de chegar à cidade, onde poderia encontrar um teto para abrigar-se do frio e da garoa gelada.
Nas rodas de conversa dos homens, Pedro ouvira dizer que a única casa da estrada estava abandonada havia anos por ser mal-assombrada. Embora ele tivesse sempre afirmado não acreditar em assombrações e fantasmas, até então nunca dera um passo fora da estrada para ao menos olhar a casa.
Agora, cansado e faminto, com as roupas ensopadas e tremendo de frio, só lhe restava a opção de ir pernoitar na casa assombrada. Para chegar mais rápido até ela, apertou o passo quanto pôde.
Mal passou pela porta, confirmou o que todo o mundo contava: embora a casa fosse abandonada, vivia sempre arrumada como se nela morasse gente noite e dia.
Mas não se intimidou com isso. No lampião havia querosene, e ele acendou o pavio. No fogão fervia água, que ele despejou na bacia e com a qual lavou os pés. Trocou de roupa, vestindo uma lá existente. Tomou a sopa que encontrou pronta e quente no fogão. Confortavelmente, deitou-se na rede enganchada na parede. Só não dormiu porque resolveu fazer um cigarro de palha e fumá-lo. Depois de umas boas baforadas, ajeitou-se e pôs-se a dormir.
Por volta da meia-noite, acordou assustado com uma voz cavernosa que parecia vir do além:
— Eu caio!
Morto de pavor, olhou parã um lado, depois para o outro e não viu nada. Benzeu-se e arriscou dizer:
— Caia com Deus!
O forró abriu-se e de lá caiu uma ossada de perna e pé de homem.
A voz ameaçou novamente:
— Eu caio!
— Caia com Deus! — apavorado, repetiu, fechando os olhos.
Caiu outra ossada de perna, ao lado da anterior.
Assim, toda vez que Pedro Malasartes respondia, mais uma parte do esqueleto de um homem caía e juntava-se às outras, cada qual em seu lugar. A ossada do crânio foi a última a despencar. Então o esqueleto riu, batendo ossos e dentes.
— Que você quer de mim? — indagou o Pedro, morto de medo e encolhendo-se no fundo da rede em que dormia.
— O senhor poderá me livrar do peso que arrasto pela eternidade.
— Eu?!
— Sim. Vago pelo além-mundo sem descanso, pois, quando eu era vivo,  enterrei um balde cheio de moedas de ouro ali na soleira daquela porta. Enquanto alguém não desenterrar esse dinheiro, não terei sossego.
— Posso ajudá-lo nesse desejo.
— Só você teve coragem de me atender. Os outros nem vinham aqui ou saíam correndo de pavor de mim.
— Pode contar comigo, seu esqueleto!
— Cave a terra, arranque o balde de moedas, dê metade aos pobres e fique com o resto.
Pedro atendeu o pedido. Deu metade aos pobres, como havia combinado. Mesmo assim, com a outra metade, ficou tão multimilionário, que nunca mais precisou trabalhar na vida.

Aventuras de Pedro MalasartesOnde histórias criam vida. Descubra agora