Epitáfio

Era meio-dia, estatística

Antes de sair
De casa
Você ouve mais um caso
No jornal matinal.
Seu corpo treme,
Sente a dor de mais uma irmã,
Que sofreu a crueldade humana
embrenhar sem permissão.

Você olha ao redor,
Um homem vem em direção.
Então troca de calçada, assim;
Como tua mãe te ensinou
Tu nunca sabes as intenções!

Respira fundo,
Controla os batimentos cardíacos
Quanto mais rápido andar, mais rápido chegará
E continua repetindo a prece
Dentro de ti;
O terço de tua avó
Pesa em teu pescoço.

Uma movimentação,
Olha de rabo de olho.
O sangue congela,
Mãos transpiram,
Teu estômago revira.

Aperta o passo.
Não olha para trás.
Ignore.

Mas ele é mais rápido.
Você sente a mão pesada;
Calos
Te apertar o ombro.
O vômito na goela;
Tenta engolir, entretanto
Um nó está formado naquele mesmo lugar.

Fecha os olhos,
Acorda desse pesadelo.
Ele puxa teu braço
Não fica com medo, princesa
E tu sabe que esse é o único sentimento que se alastra por
Todas as tuas veias.

Ele te puxa,
Encurrala na parede de um beco qualquer
Silêncio, gatinha. Não quero te machucar
E as lágrimas gritam
O que tua voz esqueceu de
Pronunciar.

Os olhos dele te assustam,
Porque parecem tanto
Com os de teu pai.
Você tenta sair dali,
Mas é tarde demais.

A invasão,
A dor,
A ânsia,
O roubo.

Tua boca seca,
Lágrimas já não desabam;
Não se ouve um pio
Como se tudo não
Passasse de um borrão.
O vazio é o que te completa.

Ele sai de ti,
E tu sai junto.

Não resta nada.

O socorro não visita;
O tremor de terra já calhou,
Ninguém percebeu.

Ninguém ouviu,
Ninguém viu,
Ninguém ajudou,
Ninguém pensou.

Ninguém nunca chegou.

Tu te colocas sobre teus pés
E segue teu caminho,
Porque amanhã tu não serás notícia
No jornal.

Nem na revista,
Nem na rádio,
Nem na conversa da tua vizinha.

Tu serás, no máximo, estatística do Estadão,
todavia, ninguém parou para ler.

***

Dedicatória: Para todas as mulheres que lutam diariamente por um mundo de igualdade. - e Lola (lolabukr), por ter a luta na veia.