Capítulo Um

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No conforto do isolamento, somos todos imorais

Dmitri Bucareste

O caminhão sacudia sobre a estrada de terra.

Deu pra ver que o sujeito não estava nada acostumado com o calor forte de Corumbá. Eu quis rir, mas apesar de ter demonstrado um humor bastante agradável, eu não queria que as coisas se seguissem com o pé esquerdo, se é que me entendem.

Talvez, ele tivesse lido meus pensamentos, pois falou enquanto abanava o rosto com a mão livre que segurava um chapéu surrado de palha:

— Calorzinho terrível esse aqui, hein?

— E olha que você teve sorte — eu disse, enquanto mirava as árvores e o mato alto que se estendiam por todo o derredor da trilha. — Hoje ainda tá fresco... dezembro aqui, o negócio pega fogo. Se você tivesse vindo umas semanas mais tarde, daí tu ia ver o que é calor de verdade.

— Deus me livre — ele entoou, coçando a garganta. — Como é que 'cês conseguem dormir num forno desses?

— De noite fica um pouco melhor — expliquei. — Não muito melhor, mas fica mais bom de se descansar. É o costume, né. É assim desde sempre.

— Eu que não acostumo com um calor maldito desses. Olha, tô vermelho que nem um peru.

Eu ri.

Ele estava mesmo. A pele branca dele certamente não o favorecia. Ele era aquele tipo de pessoa que não fica mais morena quando exposto ao sol, mas sim avermelhado; naquele tom que parecia estar em carne viva. A testa e o pescoço dele brilhavam a cada vez que a luz do sol trespassava o vidro do para-brisa, reluzindo contra o suor exacerbado.

— Mas, me fala aí Geovane. Mora aqui há quanto tempo? — ele me perguntou.

— Nasci aqui.

— Sua família toda é daqui?

— A da minha mãe é — respondi. Confesso que me senti desconfortável. Nunca gostei muito de falar sobre minha família... sobretudo em relação ao meu pai. Haviam coisas que era melhor deixar de canto.

Ele foi astuto o bastante para notar meu incômodo, pois não perguntou mais nada a respeito.

— E nunca saiu da cidade? — ele indagou.

— Como assim nunca saí da cidade, moço? — falei, rindo um pouco. — Me fala aí quantas pessoas você conhece que já saíram do país?

Ele me olhou de canto com um sorriso travesso no rosto e deixou-se rir por um momento.

— Bolívia não vale — ele interpôs. — Você mal anda meia-hora e já tá lá.

— Lógico que vale — retorqui. Olhei para o retrovisor ao meu lado, mas de pouco serviu. A poeira subia cada vez mais alto conforme os pneus passavam pela estrada de terra batida, obstruindo praticamente toda a visão que eu tinha do caminho pelo qual havíamos passado. Apoiando o braço sobre a porta, eu disse: — longe da cidade, só Campo Grande mesmo. Tenho uns parentes por lá.

Ele apenas assentiu, focado no caminho que tinha pela frente.

Um curto silêncio entre nós se seguiu, até que eu decidi quebrá-lo:

— E você, Marcio?

Ele não respondeu. Foi quase como se não houvesse me escutado.

— Marcio? — chamei novamente, mais alto. Ele me olhou com os olhos mais abertos, como se despertasse de um cochilo. Aquilo me incomodou. Não era a primeira vez que acontecia. Logo que nos conhecemos, ele mostrou uma certa dificuldade em responder às minhas perguntas quando eu o chamava por seu nome. Podia parecer loucura minha, mas era quase como se ele não se chamasse Marcio. Entretanto, eu percebi rápido que tudo aquilo não passava de tensão. Ele era como meu tio; aquele tipo de pessoa que, quando tensa, opta por não dissipar seu nervosismo, mas sim guardar para si mesmo, como se, mostrar estar sob pressão evidenciasse fraqueza; como se estivesse a expor uma grave vulnerabilidade que qualquer pessoa seria capaz de explorar. Como bom conhecedor de tais pessoas, escolhi não focar muito naquele aspecto. — E você, cara? É a primeira vez que vem pra cá?

Linhas Estreitas (3ª Temporada)Onde histórias criam vida. Descubra agora