Capítulo 19

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- O que você tanto escreve aí, Alice
- Não é da sua conta, franguinha! Só coisas da minha vida!
- Você nunca fala da sua família, não tem um namorado... você é estranha!
- Só falo o que convém!
- Assim fica difícil!! - Falei jogando as mãos para o alto - Não consigo um diálogo nem com a pôrra da governanta!!
- Modere sua língua, franga!
- Já falei que franga é a...
- Já sei.  - Ela colocou o dedo em riste - Agora muda o disco! Sempre o mesmo nhém nhém nhém!
- Arrrght! Só queria conversar um pouco!
- Então, aprenda a conversar!!

Alice era assim. Não tinha papas na língua, falava o que queria, na hora que queria, mas nada que fosse sobre a sua vida pessoal. Sempre que podia estava escrevendo, mas  nunca quando o Sr Marcos Diniz estava por  perto.  Quando chegou em casa, minha mãe tinha acabado de morrer. Era uma jovem senhora, de pouquíssimas palavras e muito trabalho, mas depois de algum tempo, depois que voltei do internato, mudou completamente. Enquanto alguns empregados temiam meu  pai, ela empinava o fino nariz e respondia o que precisava e não o que o patrão gostaria de ouvir como os outros empregados. Eu gostava dela! Seu jeito era diferente, mas eu sabia que ela cuidava de mim. E assim foi naquele dia horrível!
Eu tinha voltado de uma festa e ela me esperava na sala com alguns papéis e uma caneta na mão.

- Ainda bem que chegou! Seu pai chega pela manhã e não estava com bom pressentimento.
- Tá, já estou aqui. E nem é tarde.
- Que seja! - Ela se levantou, recolheu seus papéis e foi para seu quarto.

Um tempo depois de já estar em minha cama, ouvi alguns barulhos no andar de baixo, na área do pátio externo e fui olhar pela janela. Vi quando  Alice gesticulou com os braços e depois entregou um objeto nas mãos de alguém. Dei uma risadinha baixa. "Então ela tem um namorado". Mas, então ela abraçou a pessoa e deu para ver que era mulher, pois mesmo no escuro, dava para ver que  usava uma saia volumosa. Fechei as cortinas e deitei para dormir.
No meio da madrugada senti uma mão em meu braço e sussurrando em meu ouvido.

- Acorda, franguinha! E faça silêncio. Estamos sendo assaltados e não vou permitir que nada te aconteça.
- Hãm...o quê...- Eu estava sonolenta e achei que estivesse sonhando.
- Psiu! Quieta! Levante que vou te esconder. Quieta!
- Alice! - Ela colocou a mão em minha boca e se aproximando novamente do meu ouvido falou
- Você vai ficar calada onde eu te esconder. Eu sabia que eles viriam. Se acontecer algo comigo, procure a minha irmã.
- M-m-m-m - Eu tentei dizer que a casa tinha seguranças. Nada ia acontecer. Será que ela estava pirando? Tinha algo haver com isso?

Ela me escondeu no armário embaixo da escada que dava para o terraço. Esse armário tinha uma parede de fundo falso que eu nunca na minha vida soube! Ela me colocou ali e mais uma vez me disse para ficar calada e que procurasse a irmã dela se algo acontecesse. Como?? Como eu iria procurar a irmã dela se não sabia nada da vida da mulher? E parecendo ler meus pensamentos, ela disse que o endereço estava colado no fundo da gaveta do seu criado mudo. Eu nunca vi esse endereço!!
Ouvi os passos pesados do que pareciam ser umas quatro pessoas subindo as escadas e suas vozes um pouco distante e abafadas.

- Cadê a garota?
- Está em uma festa, ainda não chegou - As cobertas em minha vão me denunciar, Alice, sua tonta! Pensei no escuro.
- Mentira!! Vamos achá-la.
- Podem procurar, estou falando a verdade...Ei! Não sou louca de fugir! Me solta!
- Para te dar tempo de avisar alguém? Não.

Não sei quanto tempo eu passei naquele armário, adormeci esperando Alice vir me tirar dali, e se ela não veio...Não! Meu Deus! Não! Chutei a fina parede, saí do armário que não estava trancado e fui percorrendo cômodo por cômodo. Nenhum deles revirado, minha cama estava arrumada como se eu não estivesse ali, Alice arrumou! Ela não era uma tonta afinal. Desci as escadas, entrei na biblioteca que mamãe tanto amava e ali sim, parecia ter passado um furacão. Era o único lugar da casa que estava daquele jeito. De repente parei: " E se Alice estivesse junto com eles? Por isso não estava ali?". E então gritei quando a vi, no mesmo momento que meu pai entrava pela porta.

- Alice!!! Não!!!! Não!!!!
- Ela está morta, Liz
- Não é possível! Eu não ouvi o tiro!!
- Eles usaram um silenciador! Droga! Agora vou ter que chamar a polícia e...que merda!! João, resolva isso - Ele falou com seu faz tudo - E você, vai ter que falar o que viu! - Apontou para mim.

Não sei porquê decidi manter para o senhor Marcos e para a polícia a mesma história da festa que Alice disse aos assaltantes. E me sentia triste, tensa e nervosa e ele não me deu qualquer palavra de conforto.  Estava com raiva do meu pai! Sabia o quanto ele era frio, mas diante do que eu tinha acabado de ver, ser tratada por ele daquela forma, me deixou com raiva e por pura infantilidade eu menti. Ainda bem que eu menti...
Alguns meses depois daquele assalto que levou a vida de Alice, o velho Marcos, após um acesso de loucura, onde revirou toda a biblioteca de mamãe e o quarto de Alice, teve um infarto fulminante.

                            ***
Adormeci com velhas lembranças e acordei com o despertador tocando. Tinha que voar para o banho e correr para o trabalho. Tinha uma reunião de projeto importante. Olhei para o pacote ainda fechado na cama:

- Desculpe, Alice! Leio suas cartas depois!

O dia passou voando. Da editora para o estúdio, depois umas brejas com Paulina e Rubem, na casa deles mesmo, onde contei o encontro com a cigana e o que ela revelou e quando voltei para casa, estava cansada e  sonolenta. Leria depois, afinal, mesmo curiosa como uma boa leitora, as cartas de Alice não deveriam ter tantas surpresas assim! Fiz meu pequeno ritual de banho, chá, música clássica e cama, mas no meio da noite acordei de um sonho onde Alice e Aliane, vestidas com saias floridas, sorriam para mim e enquanto uma me chamava de minha menina, a outra me chamava de franguinha.
Levantei, peguei o gordo envelope, abri e comecei a ler. A cada carta amarelada que lia minha cabeça queimava de dor...eu fui amada por Alice! Ela me protegeu até o fim!!!
Passei a mão no celular, liguei para Rubem pedindo que desmarcasse meus clientes e que depois explicava tudo, mas que tinha haver com as cartas de Alice.  Passei o sábado inteiro lendo...a história da minha vida, que eu mesma não sabia!

Uma cigana leu o meu destinoOnde histórias criam vida. Descubra agora